terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O Carnaval e as recordações estendidas pela voz de velhas mais velhas que eu,


Eu páro mesmo para ouvir. Gosto mesmo de escutar. E (quase) só faço aquilo que gosto. Esta manhã parei na mercearia da aldeia. Havia um "reboliço" de memórias divertidas no ar e nos sorrisos. Quatro velhas, mais velhas que eu, a lembrarem-se de histórias do Carnaval, à volta dos legumes para levar para a sopa. Episódios de quando uns maridos eram vivos e muitos amigos tinham juventude para brincar ao Carnaval. Riam como quem estivesse na mesma aldeia mas há uns 50 anos atrás! Logo que fiz a pergunta que todas esperavam: como era o Carnaval "antigamente" desfiaram num desafio a contar-me tudo o que se lembram. Não consigo traduzir o brilho daqueles olhares a voltar às brincadeiras e diabruras a que assistiram. Não consigo descrever a "moderação" que, subtilmente, fui fazendo para não haver atropelos na narração de tantas memórias divertidas. Os clientes do café tiveram de esperar, porque no lado de cá na mercearia estava eu a querer saber do que se lembravam, e a dona do café (tagarela de vocação) queria a todo o custo ser ouvida. Deliciada, escutava. Só me apetecia ficar ali a manhã toda, por elas ficava ali muito mais tempo. Sentava-me num banco, à porta da mercearia e passava ali amanhã a registar as lembranças do Carnaval, como se conhecesse bem aquelas pessoas que elas dizem que eu conheço pelos nomes. Alguns sim, e imagino-os! Delícia, pura delícia esta de ter a confiança das pessoas e uma certa intimidade para estas conversas. " Agora já não há Carnaval, não há estendais a atravessar as ruas com roupas (cuecas e ceroulas) que eram "roubadas" de quem se esquecesse de fechar tudo. Lembro-me de umas cuecas da...." "A minha mãe, que Deus a tenha, no Carnaval, cozia sempre um galo para dar de comer aos filhos e um ano chegou à pia e não encontrou nem panela nem galo! Pensou logo que lho tinham roubado e escondido na casa de algum vizinho, era o mais natural. Mas não, à noite, andava de volta dos caldeiros que estavam debaixo da pia e lá estava a panela com o galo dentro! Não comemos ao almoço, comemos ao jantar! " "E daquela vez que o Zé e o Tonho foram roubar uma carroça à sede da freguesia. Coitado do homem quando viu que o tinham "roubado" e eles a cavalo na carroça, a atravessar as povoações, no meio da estrada a rir e vestidos de matrafonas... sim, o Zé levava uma cabeleira feita de uma corda, daquelas grossas... o Tonho desfez a corda e fez-lhe a cabeleira. Era só rir, não imagina!" Entretanto, lembrei-me dos tempos em que fui criança numa aldeia da beira baixa e que havia o enterro do entrudo. Tenho vagas memórias do que acontecia e quis confirmar se aqui também se fazia o enterro, e como era. "O enterro! ah! o enterro era o grande espectáculo de carnaval. O Xico era o Padre a Maria era a viúva. Era um fartote. Faziam o boneco e andavam com ele, rua acima, rua abaixo. A viúva numa choradeira alta e pegada, aos gritos! Ahahahahahha e o Xico a fazer de Padre! Andavam todos a fazer o enterro e a pedir chouriços para comerem depois de enterrarem o entrudo. Faziam uma fogueira para o queimar e depois assavam os enchidos, comiam e bebiam." "Era muito divertido! muito, muito. Nestes dias até parece que o Zé não se foi embora, é como se o ouvisse ainda naquela algazarra, a rir e a fazer rir. Nestes dias não me convenço que ele já não está cá" comentou uma das velhas mais velhas que eu antes de se afastar com os olhos emocionados pela saudade daqueles amigos, solteiros e casados que faziam o carnaval cá na aldeia. - Tínhamos tantas histórias para lhe contar menina, tantas! Ninguém podia ter vasos à porta! "Roubavam" tudo!" Trocavam os donos a tudo! Que ideia engraçada disse antes de fechar a "mesa". Agradeci terem-me posto a par do que foi o Carnaval aqui na aldeia e despedi-me com o pão da serra debaixo do braço. Dirigi-me a casa enquanto isso não parei de imaginei aqueles becos e estas ruas à 50 anos atrás. Era Carnaval, todos sabiam que ninguém podia levar a mal. Sou uma privilegiada, sim sou. Chegam-me histórias cheias todos os dias e são tantas que me foge o tempo para as contar todas. Mereciam ser contadas. São feitas de "extraordina-ri-idades" para quem gosta de ouvir.

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Cantar para atravessar alucinações


Sou completamente fascinada por várias áreas de conhecimento mas a saúde mental! Ah! a saúde mental é a menina dos meus olhos. Não posso afirmar que a ideia de me pôr a cantar uma canção tradicional portuguesa tenha tido o efeito (cientificamente) comprovado que acredito ter tido, mas a verdade é acredito ter conseguido "comunicar" e acalmar, com a minha voz cantada, um doente que encontrei em claro estado de alteração da consciência, desorientado, no que me pareceu ser um quadro com vários sintomas entre eles as alucinações. Perante o desafio de o tranquilizar lembrei-me de cantar (não acertei no tema logo à primeira mas insisti e ainda bem). A atenção do senhor Álvaro parou no som. Partilhamos alguns momentos de pausa no que será um "inferno" dele. Consegui prestar-lhe os cuidados que me tinha proposto e isso fez deste dia um daqueles! Um dos dias que ficam lembrados pelos instantes (minúsculos) que trazem grandeza a esta passagem. Hoje é claramente um dia assim. Esta manhã também percebi que não sei cantar nenhum fado do princípio ao fim. Vou aprender, será útil. Acredito. Quando penso no legado da minha mãe o que primeiro me vem ao pensamento é o amor, depois a poesia e logo a correr chegam as cantigas. Sabia muitas e gostava particularmente de me contar as histórias que estavam na origem dessas canções. Normalmente tinham por base uma história de amor e lembro-me sempre da que falava do José Pina e da Maria Bela. Não a sei cantar, perdeu-se algures na minha adolescência... ainda consigo cantarolar uma ou outra palavra mas sei de cor a voz da minha mãe a cantar este amor. Talvez tenha sido dela que lembrei quando me cruzei com o Sr Álvaro. A minha mãe cantava sempre que queria que eu fizesse alguma coisa à qual eu resistia. Lembro-me de ter à volta de 5 anos e de a ter à frente do baloiço, com uma tigela de sopas de leite na mão e uma cantiga na voz. Teimosa como uma criança pode ser tentava usar todo o tempo que tinha para brincar. "Perder" tempo a comer era coisa que não gostava e para me distrair dessas ideias a minha mãe ficava ali, na frente do meu balanço a cantar e a meter-me colheradas cheias das sopas de leite que ela entendia. Esta manhã inverteram-se os papéis e não sendo eu mãe do Sr Álvaro, que está internado no serviço e tem 95 anos. Uma senhora que lhe conhece a vida perguntou-me: - Disseram-me que esteve com ele e que conseguiu que ele comesse um iogurte até ao fim, é verdade? - Sim, respondi. É verdade. Estive com ele um grande bocado da manhã e ele comeu bem. A senhora agradeceu e baixou os olhos para a cama onde está o marido que não a reconhece e que está imobilizado para se proteger da batalha que trava contra os demónios, alguns deles da terra da demências. - Reparei que o enche de cuidados, continuei. Percebe-se que é um senhor cheio de mimos. - Não tenha dúvida menina, não tenha dúvida. Agora está a vê-lo assim mas acredite, foi uma pessoa muito feliz. Todos estes 95 anos dele foram, maioritariamente, muito felizes. - Acredito, respondi. Claro que acredito. Nunca lhe vou contar do teatro que fizemos juntos. Ele a combater os males, atravessado naquele rectângulo de território que lhe liga a vida. Eu, como observadora e interveniente no acto de convencer a comer um iogurte. Diante de tanta agitação lembrou-me de cantar. Ainda andei baralhada entre vários temas até chegar àquele que o fez parar. Nunca abriu completamente os olhos mas tentou ver o que se passava perto dos seus ouvidos. Eu cantava, dava-lhe uma colherada de iogurte e esperava. Cantava sempre e esperava. Cantei com os olhares todos a virarem-se para mim, uns a sorrir... e esperava. E ele comeu tudo como eu comia tudo o que a minha mãe queria... enquanto me distraía, cantava. Cantamos mãe. Cantamos juntas outra vez.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Bom dia Hipócrates


Cruzo-me quase todos os dias com Hipócrates através das palavras que o mantêm vivo e que estão gravadas na parede às portas da Faculdade de Medicina de Lisboa. Guardo uns segundos para parar e reler excertos do juramento que legou e que continua vivo na voz dos médicos quando começam a exercer. O filósofo que defendeu que todo o corpo traz em si elementos para a sua própria recuperação faz-me parar na herança que deixou quando defendeu que "o conhecimento do corpo só é possível a partir do conhecimento do homem como um todo". Tenho a sorte de me cruzar todos os dias com histórias de pessoas, doentes que estão internados, muitas vezes em macas, nos corredores mas que são tratados por médicos, enfermeiros e assistentes com um grande profissionalismo, ética e dignidade. Gosto particularmente da Madalena, uma jovem médica que me mostra a medicina com lentes cheias de futuro. Nos sapatos traz cores pintadas nos atacadores e a cada vez que me cruzo com ela devolve-me um sorriso. Olha nos olhos, nos nossos e nos dos doentes e tem um tom de voz particular, geneticamente generoso. Madalena desdobra-se nos cuidados que presta aos seus doentes e fala-me das hipóteses que investiga para o futuro. Num lugar e num espaço onde muitos andam absorvidos nas suas dúvidas, com cadernos carregados de perguntas, anotações, comentários, Madalena entusiasma-se quando trocamos ideias sobre nanoterapias, epigenética. Há médicos que trazem o dom de observar, registar, procurar e curar colado a eles. Madalena destaca-se pelo brilho com que sublinha a análise racional e crítica relativamente ao estado de saúde das populações e também dos males que atingem os próprios técnicos de saúde. É um privilégio cruzar-me com ela, acredito tanto que vou ouvir falar das investigações que tem em curso! Gosto de pessoas e gosto muito, muito de pessoas cheias de perguntas como ela. Quando me cruzo com Hipócrates volta e meia comento baixinho detalhes das minhas conversas com esta médica. Confidencio-lhe: tens discípulos de excelência filósofo! Esta menina vai encher-te de orgulho.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Amália e Camélia, rendo-me à ternura largada nos sorrisos


Ambas têm nome de flores e é assim que as vou guardar, nesta memória tantas vezes desobediente. Tropecei na ternura que as liga quando uma delas foi parar à cama do hospital. A história desenho-a nos gestos das seis mãos que nos ligam. São duas irmãs, fisicamente muito parecidas e cada uma a puxar para o seu feitio. Sabem sempre a pouco os encontros com pessoas como elas, extraordinárias numa guerra aberta contra a doença. A Amália contou-me que gosta muito de fazer renda. Viúva, mãe de uma menina que partiu há muito está sempre preocupada com a irmã. - Acha que a minha mana vem hoje? perguntava ela quando lhe ia dar os bons dias e saber como estava. - Não sei querida, mas acredito que sim, respondia. Acreditei e a minha resposta confirmou-se todos os dias porque todos os dias encontrava a mana, perdida nos corredores de um grande hospital. Ia ao encontro dela, dava-lhe a mão e levava-a à cama onde estava Amália. Fui conhecendo as duas, no pouco tempo que podíamos partilhar mas foi o suficiente para conhecer a ternura que largam a cada sorriso. Amália foi internada na sequência de vários problemas e algumas vezes dei por ela muito desorientada, a fazer gestos repetitivos com as mãos. Não percebi à primeira vista mas um dia disse-me que estava muito aborrecida com a vida, que estava cansada e muito preocupada com a mana. Fiquei a ouvi-la até que finalmente se desaborreceu um bocadinho. Contou-me que quando a vida lhe foi "dificultosa" se pôs a fazer renda e que foi assim que deu a volta às coisas. "Só pedia que me trouxessem as linhas e eu fazia o trabalho, não levava nada. Fiz o napron que está na Igreja da Graça, um grande, que ficou muito bonito. E o que está na Igreja de S. José também fui eu que o fiz. Vai lá ver, eu faço-te um para ti". Quando Camélia chegou ia confirmando tudo com um "é verdade, tudo o que ela está a dizer é verdade" e pelo meio perguntava à mana: - E quem é que te compra as linhas para fazeres a renda Amálinha? A mana respondia da cama: És tu meu amor! És tu. Eu ficava para ali comovida só de as ouvir e de cada vez que tinha oportunidade ia ter com elas, "brincar" um bocadinho se lhes via alguma lágrima. Amália partilhou outras histórias mas as que tinham rendas eram as suas preferidas e eu escutava cada palavra com os olhos postos nas mãos. Numa das fases em que estava mais agitada enrolei (em forma de tubos) três folhas de papel para limpar as mãos (daqueles que há em todas as enfermarias do serviço). Lembro-me de ter pensado que os movimentos daquelas mãos estariam relacionados com os movimentos que Amália fez a vida toda, no crochet. Lembrei-me que os tubos de papel talvez trouxessem alguma rotina e tranquilidade às mãos, podiam "passar por" linhas e acalma-la nos momentos de maior desorientação. Foi como se tivesse encontrado uma âncora para agarrar Amália a um movimento familiar sendo que estava perdida num hospital, um lugar completamente estranho. Resultou! Logo que passei os rolos de papel para as mãos dela Amália deixou de tentar tirar os acessos que as enfermeiras lhe tinham colocado para lhe garantir a medicação acertada. Os olhos, as palavras e os pensamentos continuavam perdidos, é certo, mas as mãos tinham "linhas" com que se entreter e sentia-a mais calma a cada vez que a visitava e lhe passava os papéis para as mãos, enroladinhos, como que a dar corpo ao movimento que trazia da memória. O sol foi chegando àquela janela cada dia com mais luz e finalmente Amália teve alta. Antes de sair fiz a rotina que faço sempre e fui desejar as melhoras a todos os que estão no serviço. Estavam as duas nos "amorzinho" para cá e para lá e foi com um abraço e vários beijinhos que lhes desejei o melhor para cada dia. Camélia fez questão de me dar o número de telefone e pediu-me que lhe ligasse quando fosse a Torres. Se quisesse passar lá o Carnaval, na casa delas, repetiram o que diziam todos os dias: - as portas da nossa casa estão abertas de par em para para ti meu amor. Nem me parece que tenha tido largueza para acolher tamanha ternura, tanta era a gratidão que sentia por ter partilhado com elas aquela viagem, com altos e baixos tão grandes. - Muito obrigada minhas queridas e faça o favor de não voltar a ficar tão doente disse eu mais virada para Amália que volta e meia desobedece à diálise. Hei-de ir à Igreja da Graça só para ver o napron, ri-me com elas. E vou. Palavra que vou. Sou de fazer mais tricôt, nunca tive mão para crochet. Mas gosto tanto de ver rendas e gosto mais ainda das que nascem assim, das mãos das pessoas extraordinárias que se cruzam comigo. Pessoas que todos os dias me ensinam a não desistir, a ganhar todos os pontos que haja sobre a mesa quando a vida se apresentar assim "dificultosa" como a Amália me contou.

sábado, 20 de janeiro de 2018

Aqui há Melros! E cantam tão bem!

Chegar à "cidade" meia-hora antes das oito é encontrar-me com pássaros que cantam bons dias uns aos outros, de árvore para árvore e que, vaidosos, desafiam quem passa ou também quem fica... assim, ali parado, como eu e ele a ouvi-los. Esta manhã quando cheguei confirmei que dos pombos nem uma palavra, que por ali não eram só pardais e que eram mesmo os melros que ouvia a cantarolar auroras (particularmente entusiasmadas) mesmo em cima das nossas cabeças. Nós, ali parados a ouvi-los. Eles, muito bem dispostos, a "passar o turno" uns aos outros através de sons que não conseguimos decifrar e penso isto na presença de um Nobel! Se pudesse ficar ali um dia inteiro havia de lhes seguir as cantorias. Se têm de se esforçar muito para se fazer ouvir em particular naqueles momentos em que os carros, os humanos e outros objectos se fazem ouvir, num exercício de poder sobre o canto deles. Ficaria deliciada e andaria atrás deles pelos jardins, aposto que se protegem do fumo nas traseiras do edifício, onde o verde sempre tem mais sol. Não posso ficar, dedico-lhes uns minutos e tenho de entrar. Combino que quando sair, a meio da tarde vou à procura deles para me despedir. Durante a semana é quase impossível. Saio dos corredores com a música a encher-me as orelhas, tanto é o frio. Mas hoje... hoje sentei-me ali à espera deles. Virei os olhos para cima e encontrei pardais, mais longe, mais ao fundo estavam os silenciosos pombos a sobrevoar as torres e eu ali, parada, a olhar para ele até que começaram a cantar para os vermos bem. Levantei-me, trazia as mãos carregadas de instantes fortes e fui atrás da cantoria. No cimo do ramo mais alto da árvore mais alta estavam três. Olhei para eles, cumprimentei-os e exclamei: - bem sabia que aqui há melros! Senhores, cantam tão bem! Naturalmente que ficaram curiosos comigo ali, especada à procura deles e eles lá do alto, calados (por momentos) e sempre a olhar para mim. Pelo cantar da tarde tenho ideia que estavam atentos às confidências, aos desabafos. Dizia-lhes que continuo a ser assim comovida de cada vez que alguém escolhe partir comigo ali. Disse-lhes que depois de lhes dar os bons dias, entrei no elevador e subi. Encontrei Madalena sem vontade nenhuma de comer, a papa não parecia boa e fui eu a correr ao frigorifico buscar uns potes (pequeninos) de fruta que a filha tinha deixado para ela! Fiquei contente por me ter lembrado. Tão contente! Madalena ainda comeu três colheres e disse: - não, não quero mais. Voltou o olhar para o lado. Umas horas depois andava eu entretida a inventar maneiras partilhar uns mimos quando olhei para ela e sorrimos as duas. Tinham passado as dores, não estavam lá. Foi o último sorriso que trocamos, momentos depois voltei para ver como estava e fechou-se ali o olhar, desta vez não queria dormir. No calor da minha mão imaginei que estaria por ali a sorrir, livre do incómodo colchão. Vi-a fechar a cortina, despedir-se das cores lindas que teve no cabelo. Quase sinto que se dirigia a ver um rio. - Talvez tenha seguido o vosso cantar... comentei com os melros. - Não! responderam. Não cantaram mais nada antes de me despedir de todos e seguir. Após aquele silêncio recomecei a ouvi-los. Afundei-me (não nas palavras ou na música como faço habitualmente) mas nos "Atos Humanos" descritos a partir da Correia. Grande é a batalha, o amor e os melros! Grande é o barulho invisível cá dentro.

sábado, 13 de janeiro de 2018

Vida, 1923


Chama-se Isaura e partilhamos a mão uma da outra. Quando chegou falou-me dos netos, bisnetos, da neta que estava de partida para a Arábia Saudita e do orgulho que sentiam por vê-los voar, fortes e corajosos a atravessar o mundo no que os realiza. No primeiro dia trazia aquele sorriso e uma força gigante a encher-lhe a coragem. Durante o tempo que esteve connosco sorriu todas as manhãs, mesmo quando a máscara de oxigénio lhe moldava o olhar. Acompanhei a entrada de vários familiares, em particular dos netos e bisnetos. Quando eu chegava ao serviço, a manhã, era (quase sempre) marcada pela evolução positiva do estado clínico. No entanto vários foram os dias que ao despedir-me estava mais cansada de guerrear contra os bichos. "Rezo por si" despedi-me dela algumas vezes com estas palavras antes de sair comovida perante a dignidade com que acolhia a paciência de continuar ali. Sempre lhe dei a mão pele na pele, num gesto de respeito que nos afasta qualquer medo de prognósticos provisórios. Os cabelos brancos e o olhar cheio de coragem trago-os sempre comigo, tal como a memória das vezes que a sentir-me feliz partilhava com o neto os momentos em que não estava e em que ele tinha passado bem. Ele, o menino que chorava perante a avó debilitada. Sentia que era meu dever partilhar com a família as coisas boas a que tinha assistido nas horas que não eram das visitas. - Esta manhã estava muito consciente, conversou connosco e sorriu, disse um dia ao neto numa vontade urgente de lhe garantir que havia bocados bons... mesmo quando eles não os conheciam. Esta manhã quando cheguei a neta dormir junto a cama da avó. Perguntei se queria que lhe fosse buscar um café. Disse que não, que desceria para tomar o pequeno almoço logo que a tia chegasse. Num gesto de quem não quer sair dali continuou a conversar com a avó que lhe pedia que fosse comer, que estava bem. E esteve bem durante os últimos minutos. - Estou com um pouco de falta de ar, partilhou connosco através da máscara. Já tinha conseguido que a neta fosse tomar o pequeno-almoço e sinto que a partir dali se preparava para partir. Iniciou um ciclo de respiração próprio de quem se prepara para a viagem, como a fazer-nos sentir que os seus estavam todos entregues ao amor que ela mesma ajudara a construíra naquela família. Foi comovente testemunhar isso mesmo, o amor que multiplicou a partir da pedra basilar que lhe reconheço. A enfermeira que acompanhou comigo a aproximação do comboio àquela paragem fez de tudo para a manter confortável, garantiu que a medicação lhe tiraria qualquer desconforto causado pela dor e aconchegou-a na esperança que a ver continuar a respirar. Estava o sol a marcar o meio dia e meia quando de mão dada na nela lhe procurei o bater do pulso. De um lado eu do outro a enfermeira. Por segundos (foi ilusão minha) acreditei que era dela aquele movimento que vinha apenas do meu pulso. PNa minha mão desligou o sopro com que acompanhava o ar que lhe saia da máscara. Partiu ali, naquele momento, em paz, sossegada, numa respiração pausada, sem sinal de sofrimento ou desconforto. Pela primeira vez tive na mão a vida a sumir-se, acompanhei a chegada à derradeira estação que começou por volta do ano da graça de 1923. O meu peito encheu-se de repente de emoção e dor. Confortei-me com a certeza que havia naquela senhora a força do que vivem uma vida abençoados pelo amor. E foi carregada de amor que a vi "sair" daquela cama de hospital. Minutos mais tarde imaginei-a a sorrir, por ali, à nossa volta, num gesto livre sorridente de quem se tinha livrado das máscaras, dos fios, tubos. Sentia-a a aconchegar todos os movimentos à volta dela, tudo o que usamos para a manter viva. Não havíamos de voltar a pedir-lhe calma, paciência... deixou na minha mão a certeza de que os que mais amava lhe guardaria o sorriso e aquele olhar luminoso. Depois teve início um ritual hospitalar que não conhecia. A médica conformou a partida e abrimos a sala. O "velório" começava ali. A enfermeira pegou no telefone e sem acertar logo nos números (quase incrédula perante a rapidez da partida) informou a família. E foram chegando os rostos, lavados em lágrimas, para se despedir. A neta, que passara a noite ao lado da cama de Isaura chamou-nos para nos abraçar e agradecer. "Partiu sem dor" garantimos. E foi mesmo assim que aconteceu. Partiu acompanhada por nós e de mão dada na minha. Um interior de mim conhece a certeza das palavras que disse à bisneta: - Não morreu enquanto viver em ti, só não conseguiu ficar mais tempo. Lutou até a fim, foi uma guerreira contra os malefícios deste inverno, mas não partiu e sabe que continuará a sorrir para ti" Confortamo-nos nos abraços que trocamos com os familiares e num jeito desajeitado de quem se afasta devagarinho para não roubar tempo à família (porque aqui nenhum segundo pode ser retirado à privacidade que se impõe perante a morte dos que amamos) saímos. Hei-de guarda-la a falar-me dos netos e bisnetos. O sorriso de quem não se incomoda com as rotinas de um hospital, e do olhar que garantia ter tido uma vida cheia de amor, de um profundo e ampliado amor. Onde estiver agora, numa forma de energia que regressa às estrelas, despeço-me de si Isaura, com um beijinho e um nó no peito que não se desfez. Garanto-lhe que fez nascer em mim gratidão por testemunhar tamanha dignidade e por ter marcado a minha vida com o rasgo último do sopro seu, na palma da minha mão. Consigo materializei os últimos passos de uma vida, em si refiz-me grão de areia. Há muito que não abraçava com esta força os meus filhos quando regressei a eles no fim do dia. Nunca antes tinha sido testemunha de uma despedida. Hei-de encontra-la quando um dia me cruzar, na cidade ou no mundo com uma cara sua, conhecida. Sei que a vou encontrar mais vezes, não se perde a memória de um dia assim. Descanse em paz minha querida, brilhe pelos seus e por nós que tivemos o privilégio de a receber e nos sentir marcados por si.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Quando o dia de trabalho não me sai do caminho


No dia dedicado à gratidão só posso agradecer. Agradecer a mensagem que me fala da princesa do futuro, a voz da amiga me devolve gargalhadas, os filhos à espera com uma lareira acesa e perspectivas incríveis sobre como me vou sentir ao partilhar com os futuros netos o tempo que por cá andei em simultâneo com os meus heróis... "imagine", oferecem-me para ouvir. Enrolada um envelope recebi também uma linda carta de amor, escrita pela minha filha criança, com sete passos de leitura. Impossível descrever e demasiado íntimo para partilhar. Tudo isto soube, particularmente, bem num dia como este em que o trabalho veio colado a mim pelo caminho. Por mais técnicas que nos tenham ensinado, por mais anos de experiência... há dias que não nos soltam de tão intensos que são em tristeza. De qualquer forma o dia dedicado à gratidão trouxe-me a história do investigador, médico, que num país da Ásia não conseguiu ver o laboratório do instituto onde trabalhou a vida inteira ser destruído. Perante a véspera do dia em que todo o conhecimento reunido naquele edifício seria destruído e desfeito com os escombros este investigador não resistiu e depois de meses em conflito obsessivo entre a revolta, a não aceitação e a ética decidiu alugar a maior carrinha que encontrou na cidade e na noite anterior à destruição do edifício assaltou aquele que foi o seu laboratório, onde trabalhou a vida inteira. Levou os documentos, todos os estudos, todo o conhecimento conseguiu e que estava ali reunido. Espalhou caixas pela casa dele, dos amigos... "Não resisti! Não aguentei e assaltei o meu próprio laboratório! Não me sinto em paz com isso mas planeei tudo e na véspera das máquinas entrarem para derrubar as primeiras paredes fui lá buscar tudo o que consegui. Enfiei um capuz na cabeça e tudo! Estava com medo dos militares, mas ver o meu laboratório desaparecer numa decisão política que não soube valorizar nenhum daqueles saberes... não! isso não! E se não tivesse feito aquilo ia perseguir um dos meus melhores amigos para o resto da vida porque ele fazia parte do grupo de pessoas que decidiram encerrar o instituto e destruir tantos anos de conhecimentos. Podiam tirar-me tudo, mas tanta investigação na área da saúde, não! Não consegui". A história deste médico veio de braço dado comigo para casa. A dele e a de Jackie de quem me despedi com o coração apertado. Amanhã o marido e a filha voltam para Londres e ela ficará (novamente) sózinha à espera que o coração estabilize e os médicos assinem a alta para que possa voltar para casa, Londres, onde mora há mais de 80 anos e onde o marido e os 9 filhos a esperam numa família enorme onde são (quase) todos muito ansiosos. Antes de me despedir do marido e da filha disse-lhes olhos nos olhos que cuidarei dela enquanto estiver internada. Podem ir (um bocadinho) descansados que farei o meu melhor. Como sou de agradecer por tudo e por tanto que me acontece voltei para casa assim... num movimento desconfortável entre a preocupação com ela (amanhã não vou trabalhar, fico sem actualizações na evolução dela) e por outro lado com a alegria de ter sido parte da coincidência maravilhosa que fechou este dia de trabalho. Esta manhã, antes de sair de casa, meti na mochila um pote de plasticina para oferecer à Jackie. Pensei que iria para casa hoje (ou amanhã, mas com a família) e era uma forma de me despedir e lhe dar que fazer durante a viagem que será feita de carro, não pode voar por enquanto). Hoje ainda, com o passar do dia percebemos todos que Jackie fica por cá mais uns dias e essa tristeza veio comigo, claro. Mas levei a plasticina com intenção de lha oferecer e foi isso que fiz, antes de sair. Surpresa grande foi saber que Jackie foi escultora a vida inteira! Uauuu! Se algum dia estiver internada (já velhinha) numa cama de hospital vou gostar que alguém me diga poesia para o tempo passar mais depressa. À Jackie, a plasticina eu imagino-me com a poesia.