terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O Carnaval e as recordações estendidas pela voz de velhas mais velhas que eu,


Eu páro mesmo para ouvir. Gosto mesmo de escutar. E (quase) só faço aquilo que gosto. Esta manhã parei na mercearia da aldeia. Havia um "reboliço" de memórias divertidas no ar e nos sorrisos. Quatro velhas, mais velhas que eu, a lembrarem-se de histórias do Carnaval, à volta dos legumes para levar para a sopa. Episódios de quando uns maridos eram vivos e muitos amigos tinham juventude para brincar ao Carnaval. Riam como quem estivesse na mesma aldeia mas há uns 50 anos atrás! Logo que fiz a pergunta que todas esperavam: como era o Carnaval "antigamente" desfiaram num desafio a contar-me tudo o que se lembram. Não consigo traduzir o brilho daqueles olhares a voltar às brincadeiras e diabruras a que assistiram. Não consigo descrever a "moderação" que, subtilmente, fui fazendo para não haver atropelos na narração de tantas memórias divertidas. Os clientes do café tiveram de esperar, porque no lado de cá na mercearia estava eu a querer saber do que se lembravam, e a dona do café (tagarela de vocação) queria a todo o custo ser ouvida. Deliciada, escutava. Só me apetecia ficar ali a manhã toda, por elas ficava ali muito mais tempo. Sentava-me num banco, à porta da mercearia e passava ali amanhã a registar as lembranças do Carnaval, como se conhecesse bem aquelas pessoas que elas dizem que eu conheço pelos nomes. Alguns sim, e imagino-os! Delícia, pura delícia esta de ter a confiança das pessoas e uma certa intimidade para estas conversas. " Agora já não há Carnaval, não há estendais a atravessar as ruas com roupas (cuecas e ceroulas) que eram "roubadas" de quem se esquecesse de fechar tudo. Lembro-me de umas cuecas da...." "A minha mãe, que Deus a tenha, no Carnaval, cozia sempre um galo para dar de comer aos filhos e um ano chegou à pia e não encontrou nem panela nem galo! Pensou logo que lho tinham roubado e escondido na casa de algum vizinho, era o mais natural. Mas não, à noite, andava de volta dos caldeiros que estavam debaixo da pia e lá estava a panela com o galo dentro! Não comemos ao almoço, comemos ao jantar! " "E daquela vez que o Zé e o Tonho foram roubar uma carroça à sede da freguesia. Coitado do homem quando viu que o tinham "roubado" e eles a cavalo na carroça, a atravessar as povoações, no meio da estrada a rir e vestidos de matrafonas... sim, o Zé levava uma cabeleira feita de uma corda, daquelas grossas... o Tonho desfez a corda e fez-lhe a cabeleira. Era só rir, não imagina!" Entretanto, lembrei-me dos tempos em que fui criança numa aldeia da beira baixa e que havia o enterro do entrudo. Tenho vagas memórias do que acontecia e quis confirmar se aqui também se fazia o enterro, e como era. "O enterro! ah! o enterro era o grande espectáculo de carnaval. O Xico era o Padre a Maria era a viúva. Era um fartote. Faziam o boneco e andavam com ele, rua acima, rua abaixo. A viúva numa choradeira alta e pegada, aos gritos! Ahahahahahha e o Xico a fazer de Padre! Andavam todos a fazer o enterro e a pedir chouriços para comerem depois de enterrarem o entrudo. Faziam uma fogueira para o queimar e depois assavam os enchidos, comiam e bebiam." "Era muito divertido! muito, muito. Nestes dias até parece que o Zé não se foi embora, é como se o ouvisse ainda naquela algazarra, a rir e a fazer rir. Nestes dias não me convenço que ele já não está cá" comentou uma das velhas mais velhas que eu antes de se afastar com os olhos emocionados pela saudade daqueles amigos, solteiros e casados que faziam o carnaval cá na aldeia. - Tínhamos tantas histórias para lhe contar menina, tantas! Ninguém podia ter vasos à porta! "Roubavam" tudo!" Trocavam os donos a tudo! Que ideia engraçada disse antes de fechar a "mesa". Agradeci terem-me posto a par do que foi o Carnaval aqui na aldeia e despedi-me com o pão da serra debaixo do braço. Dirigi-me a casa enquanto isso não parei de imaginei aqueles becos e estas ruas à 50 anos atrás. Era Carnaval, todos sabiam que ninguém podia levar a mal. Sou uma privilegiada, sim sou. Chegam-me histórias cheias todos os dias e são tantas que me foge o tempo para as contar todas. Mereciam ser contadas. São feitas de "extraordina-ri-idades" para quem gosta de ouvir.

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Cantar para atravessar alucinações


Sou completamente fascinada por várias áreas de conhecimento mas a saúde mental! Ah! a saúde mental é a menina dos meus olhos. Não posso afirmar que a ideia de me pôr a cantar uma canção tradicional portuguesa tenha tido o efeito (cientificamente) comprovado que acredito ter tido, mas a verdade é acredito ter conseguido "comunicar" e acalmar, com a minha voz cantada, um doente que encontrei em claro estado de alteração da consciência, desorientado, no que me pareceu ser um quadro com vários sintomas entre eles as alucinações. Perante o desafio de o tranquilizar lembrei-me de cantar (não acertei no tema logo à primeira mas insisti e ainda bem). A atenção do senhor Álvaro parou no som. Partilhamos alguns momentos de pausa no que será um "inferno" dele. Consegui prestar-lhe os cuidados que me tinha proposto e isso fez deste dia um daqueles! Um dos dias que ficam lembrados pelos instantes (minúsculos) que trazem grandeza a esta passagem. Hoje é claramente um dia assim. Esta manhã também percebi que não sei cantar nenhum fado do princípio ao fim. Vou aprender, será útil. Acredito. Quando penso no legado da minha mãe o que primeiro me vem ao pensamento é o amor, depois a poesia e logo a correr chegam as cantigas. Sabia muitas e gostava particularmente de me contar as histórias que estavam na origem dessas canções. Normalmente tinham por base uma história de amor e lembro-me sempre da que falava do José Pina e da Maria Bela. Não a sei cantar, perdeu-se algures na minha adolescência... ainda consigo cantarolar uma ou outra palavra mas sei de cor a voz da minha mãe a cantar este amor. Talvez tenha sido dela que lembrei quando me cruzei com o Sr Álvaro. A minha mãe cantava sempre que queria que eu fizesse alguma coisa à qual eu resistia. Lembro-me de ter à volta de 5 anos e de a ter à frente do baloiço, com uma tigela de sopas de leite na mão e uma cantiga na voz. Teimosa como uma criança pode ser tentava usar todo o tempo que tinha para brincar. "Perder" tempo a comer era coisa que não gostava e para me distrair dessas ideias a minha mãe ficava ali, na frente do meu balanço a cantar e a meter-me colheradas cheias das sopas de leite que ela entendia. Esta manhã inverteram-se os papéis e não sendo eu mãe do Sr Álvaro, que está internado no serviço e tem 95 anos. Uma senhora que lhe conhece a vida perguntou-me: - Disseram-me que esteve com ele e que conseguiu que ele comesse um iogurte até ao fim, é verdade? - Sim, respondi. É verdade. Estive com ele um grande bocado da manhã e ele comeu bem. A senhora agradeceu e baixou os olhos para a cama onde está o marido que não a reconhece e que está imobilizado para se proteger da batalha que trava contra os demónios, alguns deles da terra da demências. - Reparei que o enche de cuidados, continuei. Percebe-se que é um senhor cheio de mimos. - Não tenha dúvida menina, não tenha dúvida. Agora está a vê-lo assim mas acredite, foi uma pessoa muito feliz. Todos estes 95 anos dele foram, maioritariamente, muito felizes. - Acredito, respondi. Claro que acredito. Nunca lhe vou contar do teatro que fizemos juntos. Ele a combater os males, atravessado naquele rectângulo de território que lhe liga a vida. Eu, como observadora e interveniente no acto de convencer a comer um iogurte. Diante de tanta agitação lembrou-me de cantar. Ainda andei baralhada entre vários temas até chegar àquele que o fez parar. Nunca abriu completamente os olhos mas tentou ver o que se passava perto dos seus ouvidos. Eu cantava, dava-lhe uma colherada de iogurte e esperava. Cantava sempre e esperava. Cantei com os olhares todos a virarem-se para mim, uns a sorrir... e esperava. E ele comeu tudo como eu comia tudo o que a minha mãe queria... enquanto me distraía, cantava. Cantamos mãe. Cantamos juntas outra vez.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Bom dia Hipócrates


Cruzo-me quase todos os dias com Hipócrates através das palavras que o mantêm vivo e que estão gravadas na parede às portas da Faculdade de Medicina de Lisboa. Guardo uns segundos para parar e reler excertos do juramento que legou e que continua vivo na voz dos médicos quando começam a exercer. O filósofo que defendeu que todo o corpo traz em si elementos para a sua própria recuperação faz-me parar na herança que deixou quando defendeu que "o conhecimento do corpo só é possível a partir do conhecimento do homem como um todo". Tenho a sorte de me cruzar todos os dias com histórias de pessoas, doentes que estão internados, muitas vezes em macas, nos corredores mas que são tratados por médicos, enfermeiros e assistentes com um grande profissionalismo, ética e dignidade. Gosto particularmente da Madalena, uma jovem médica que me mostra a medicina com lentes cheias de futuro. Nos sapatos traz cores pintadas nos atacadores e a cada vez que me cruzo com ela devolve-me um sorriso. Olha nos olhos, nos nossos e nos dos doentes e tem um tom de voz particular, geneticamente generoso. Madalena desdobra-se nos cuidados que presta aos seus doentes e fala-me das hipóteses que investiga para o futuro. Num lugar e num espaço onde muitos andam absorvidos nas suas dúvidas, com cadernos carregados de perguntas, anotações, comentários, Madalena entusiasma-se quando trocamos ideias sobre nanoterapias, epigenética. Há médicos que trazem o dom de observar, registar, procurar e curar colado a eles. Madalena destaca-se pelo brilho com que sublinha a análise racional e crítica relativamente ao estado de saúde das populações e também dos males que atingem os próprios técnicos de saúde. É um privilégio cruzar-me com ela, acredito tanto que vou ouvir falar das investigações que tem em curso! Gosto de pessoas e gosto muito, muito de pessoas cheias de perguntas como ela. Quando me cruzo com Hipócrates volta e meia comento baixinho detalhes das minhas conversas com esta médica. Confidencio-lhe: tens discípulos de excelência filósofo! Esta menina vai encher-te de orgulho.