sábado, 3 de fevereiro de 2018

Cantar para atravessar alucinações


Sou completamente fascinada por várias áreas de conhecimento mas a saúde mental! Ah! a saúde mental é a menina dos meus olhos. Não posso afirmar que a ideia de me pôr a cantar uma canção tradicional portuguesa tenha tido o efeito (cientificamente) comprovado que acredito ter tido, mas a verdade é acredito ter conseguido "comunicar" e acalmar, com a minha voz cantada, um doente que encontrei em claro estado de alteração da consciência, desorientado, no que me pareceu ser um quadro com vários sintomas entre eles as alucinações. Perante o desafio de o tranquilizar lembrei-me de cantar (não acertei no tema logo à primeira mas insisti e ainda bem). A atenção do senhor Álvaro parou no som. Partilhamos alguns momentos de pausa no que será um "inferno" dele. Consegui prestar-lhe os cuidados que me tinha proposto e isso fez deste dia um daqueles! Um dos dias que ficam lembrados pelos instantes (minúsculos) que trazem grandeza a esta passagem. Hoje é claramente um dia assim. Esta manhã também percebi que não sei cantar nenhum fado do princípio ao fim. Vou aprender, será útil. Acredito. Quando penso no legado da minha mãe o que primeiro me vem ao pensamento é o amor, depois a poesia e logo a correr chegam as cantigas. Sabia muitas e gostava particularmente de me contar as histórias que estavam na origem dessas canções. Normalmente tinham por base uma história de amor e lembro-me sempre da que falava do José Pina e da Maria Bela. Não a sei cantar, perdeu-se algures na minha adolescência... ainda consigo cantarolar uma ou outra palavra mas sei de cor a voz da minha mãe a cantar este amor. Talvez tenha sido dela que lembrei quando me cruzei com o Sr Álvaro. A minha mãe cantava sempre que queria que eu fizesse alguma coisa à qual eu resistia. Lembro-me de ter à volta de 5 anos e de a ter à frente do baloiço, com uma tigela de sopas de leite na mão e uma cantiga na voz. Teimosa como uma criança pode ser tentava usar todo o tempo que tinha para brincar. "Perder" tempo a comer era coisa que não gostava e para me distrair dessas ideias a minha mãe ficava ali, na frente do meu balanço a cantar e a meter-me colheradas cheias das sopas de leite que ela entendia. Esta manhã inverteram-se os papéis e não sendo eu mãe do Sr Álvaro, que está internado no serviço e tem 95 anos. Uma senhora que lhe conhece a vida perguntou-me: - Disseram-me que esteve com ele e que conseguiu que ele comesse um iogurte até ao fim, é verdade? - Sim, respondi. É verdade. Estive com ele um grande bocado da manhã e ele comeu bem. A senhora agradeceu e baixou os olhos para a cama onde está o marido que não a reconhece e que está imobilizado para se proteger da batalha que trava contra os demónios, alguns deles da terra da demências. - Reparei que o enche de cuidados, continuei. Percebe-se que é um senhor cheio de mimos. - Não tenha dúvida menina, não tenha dúvida. Agora está a vê-lo assim mas acredite, foi uma pessoa muito feliz. Todos estes 95 anos dele foram, maioritariamente, muito felizes. - Acredito, respondi. Claro que acredito. Nunca lhe vou contar do teatro que fizemos juntos. Ele a combater os males, atravessado naquele rectângulo de território que lhe liga a vida. Eu, como observadora e interveniente no acto de convencer a comer um iogurte. Diante de tanta agitação lembrou-me de cantar. Ainda andei baralhada entre vários temas até chegar àquele que o fez parar. Nunca abriu completamente os olhos mas tentou ver o que se passava perto dos seus ouvidos. Eu cantava, dava-lhe uma colherada de iogurte e esperava. Cantava sempre e esperava. Cantei com os olhares todos a virarem-se para mim, uns a sorrir... e esperava. E ele comeu tudo como eu comia tudo o que a minha mãe queria... enquanto me distraía, cantava. Cantamos mãe. Cantamos juntas outra vez.

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