quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Amália e Camélia, rendo-me à ternura largada nos sorrisos


Ambas têm nome de flores e é assim que as vou guardar, nesta memória tantas vezes desobediente. Tropecei na ternura que as liga quando uma delas foi parar à cama do hospital. A história desenho-a nos gestos das seis mãos que nos ligam. São duas irmãs, fisicamente muito parecidas e cada uma a puxar para o seu feitio. Sabem sempre a pouco os encontros com pessoas como elas, extraordinárias numa guerra aberta contra a doença. A Amália contou-me que gosta muito de fazer renda. Viúva, mãe de uma menina que partiu há muito está sempre preocupada com a irmã. - Acha que a minha mana vem hoje? perguntava ela quando lhe ia dar os bons dias e saber como estava. - Não sei querida, mas acredito que sim, respondia. Acreditei e a minha resposta confirmou-se todos os dias porque todos os dias encontrava a mana, perdida nos corredores de um grande hospital. Ia ao encontro dela, dava-lhe a mão e levava-a à cama onde estava Amália. Fui conhecendo as duas, no pouco tempo que podíamos partilhar mas foi o suficiente para conhecer a ternura que largam a cada sorriso. Amália foi internada na sequência de vários problemas e algumas vezes dei por ela muito desorientada, a fazer gestos repetitivos com as mãos. Não percebi à primeira vista mas um dia disse-me que estava muito aborrecida com a vida, que estava cansada e muito preocupada com a mana. Fiquei a ouvi-la até que finalmente se desaborreceu um bocadinho. Contou-me que quando a vida lhe foi "dificultosa" se pôs a fazer renda e que foi assim que deu a volta às coisas. "Só pedia que me trouxessem as linhas e eu fazia o trabalho, não levava nada. Fiz o napron que está na Igreja da Graça, um grande, que ficou muito bonito. E o que está na Igreja de S. José também fui eu que o fiz. Vai lá ver, eu faço-te um para ti". Quando Camélia chegou ia confirmando tudo com um "é verdade, tudo o que ela está a dizer é verdade" e pelo meio perguntava à mana: - E quem é que te compra as linhas para fazeres a renda Amálinha? A mana respondia da cama: És tu meu amor! És tu. Eu ficava para ali comovida só de as ouvir e de cada vez que tinha oportunidade ia ter com elas, "brincar" um bocadinho se lhes via alguma lágrima. Amália partilhou outras histórias mas as que tinham rendas eram as suas preferidas e eu escutava cada palavra com os olhos postos nas mãos. Numa das fases em que estava mais agitada enrolei (em forma de tubos) três folhas de papel para limpar as mãos (daqueles que há em todas as enfermarias do serviço). Lembro-me de ter pensado que os movimentos daquelas mãos estariam relacionados com os movimentos que Amália fez a vida toda, no crochet. Lembrei-me que os tubos de papel talvez trouxessem alguma rotina e tranquilidade às mãos, podiam "passar por" linhas e acalma-la nos momentos de maior desorientação. Foi como se tivesse encontrado uma âncora para agarrar Amália a um movimento familiar sendo que estava perdida num hospital, um lugar completamente estranho. Resultou! Logo que passei os rolos de papel para as mãos dela Amália deixou de tentar tirar os acessos que as enfermeiras lhe tinham colocado para lhe garantir a medicação acertada. Os olhos, as palavras e os pensamentos continuavam perdidos, é certo, mas as mãos tinham "linhas" com que se entreter e sentia-a mais calma a cada vez que a visitava e lhe passava os papéis para as mãos, enroladinhos, como que a dar corpo ao movimento que trazia da memória. O sol foi chegando àquela janela cada dia com mais luz e finalmente Amália teve alta. Antes de sair fiz a rotina que faço sempre e fui desejar as melhoras a todos os que estão no serviço. Estavam as duas nos "amorzinho" para cá e para lá e foi com um abraço e vários beijinhos que lhes desejei o melhor para cada dia. Camélia fez questão de me dar o número de telefone e pediu-me que lhe ligasse quando fosse a Torres. Se quisesse passar lá o Carnaval, na casa delas, repetiram o que diziam todos os dias: - as portas da nossa casa estão abertas de par em para para ti meu amor. Nem me parece que tenha tido largueza para acolher tamanha ternura, tanta era a gratidão que sentia por ter partilhado com elas aquela viagem, com altos e baixos tão grandes. - Muito obrigada minhas queridas e faça o favor de não voltar a ficar tão doente disse eu mais virada para Amália que volta e meia desobedece à diálise. Hei-de ir à Igreja da Graça só para ver o napron, ri-me com elas. E vou. Palavra que vou. Sou de fazer mais tricôt, nunca tive mão para crochet. Mas gosto tanto de ver rendas e gosto mais ainda das que nascem assim, das mãos das pessoas extraordinárias que se cruzam comigo. Pessoas que todos os dias me ensinam a não desistir, a ganhar todos os pontos que haja sobre a mesa quando a vida se apresentar assim "dificultosa" como a Amália me contou.

sábado, 20 de janeiro de 2018

Aqui há Melros! E cantam tão bem!

Chegar à "cidade" meia-hora antes das oito é encontrar-me com pássaros que cantam bons dias uns aos outros, de árvore para árvore e que, vaidosos, desafiam quem passa ou também quem fica... assim, ali parado, como eu e ele a ouvi-los. Esta manhã quando cheguei confirmei que dos pombos nem uma palavra, que por ali não eram só pardais e que eram mesmo os melros que ouvia a cantarolar auroras (particularmente entusiasmadas) mesmo em cima das nossas cabeças. Nós, ali parados a ouvi-los. Eles, muito bem dispostos, a "passar o turno" uns aos outros através de sons que não conseguimos decifrar e penso isto na presença de um Nobel! Se pudesse ficar ali um dia inteiro havia de lhes seguir as cantorias. Se têm de se esforçar muito para se fazer ouvir em particular naqueles momentos em que os carros, os humanos e outros objectos se fazem ouvir, num exercício de poder sobre o canto deles. Ficaria deliciada e andaria atrás deles pelos jardins, aposto que se protegem do fumo nas traseiras do edifício, onde o verde sempre tem mais sol. Não posso ficar, dedico-lhes uns minutos e tenho de entrar. Combino que quando sair, a meio da tarde vou à procura deles para me despedir. Durante a semana é quase impossível. Saio dos corredores com a música a encher-me as orelhas, tanto é o frio. Mas hoje... hoje sentei-me ali à espera deles. Virei os olhos para cima e encontrei pardais, mais longe, mais ao fundo estavam os silenciosos pombos a sobrevoar as torres e eu ali, parada, a olhar para ele até que começaram a cantar para os vermos bem. Levantei-me, trazia as mãos carregadas de instantes fortes e fui atrás da cantoria. No cimo do ramo mais alto da árvore mais alta estavam três. Olhei para eles, cumprimentei-os e exclamei: - bem sabia que aqui há melros! Senhores, cantam tão bem! Naturalmente que ficaram curiosos comigo ali, especada à procura deles e eles lá do alto, calados (por momentos) e sempre a olhar para mim. Pelo cantar da tarde tenho ideia que estavam atentos às confidências, aos desabafos. Dizia-lhes que continuo a ser assim comovida de cada vez que alguém escolhe partir comigo ali. Disse-lhes que depois de lhes dar os bons dias, entrei no elevador e subi. Encontrei Madalena sem vontade nenhuma de comer, a papa não parecia boa e fui eu a correr ao frigorifico buscar uns potes (pequeninos) de fruta que a filha tinha deixado para ela! Fiquei contente por me ter lembrado. Tão contente! Madalena ainda comeu três colheres e disse: - não, não quero mais. Voltou o olhar para o lado. Umas horas depois andava eu entretida a inventar maneiras partilhar uns mimos quando olhei para ela e sorrimos as duas. Tinham passado as dores, não estavam lá. Foi o último sorriso que trocamos, momentos depois voltei para ver como estava e fechou-se ali o olhar, desta vez não queria dormir. No calor da minha mão imaginei que estaria por ali a sorrir, livre do incómodo colchão. Vi-a fechar a cortina, despedir-se das cores lindas que teve no cabelo. Quase sinto que se dirigia a ver um rio. - Talvez tenha seguido o vosso cantar... comentei com os melros. - Não! responderam. Não cantaram mais nada antes de me despedir de todos e seguir. Após aquele silêncio recomecei a ouvi-los. Afundei-me (não nas palavras ou na música como faço habitualmente) mas nos "Atos Humanos" descritos a partir da Correia. Grande é a batalha, o amor e os melros! Grande é o barulho invisível cá dentro.

sábado, 13 de janeiro de 2018

Vida, 1923


Chama-se Isaura e partilhamos a mão uma da outra. Quando chegou falou-me dos netos, bisnetos, da neta que estava de partida para a Arábia Saudita e do orgulho que sentiam por vê-los voar, fortes e corajosos a atravessar o mundo no que os realiza. No primeiro dia trazia aquele sorriso e uma força gigante a encher-lhe a coragem. Durante o tempo que esteve connosco sorriu todas as manhãs, mesmo quando a máscara de oxigénio lhe moldava o olhar. Acompanhei a entrada de vários familiares, em particular dos netos e bisnetos. Quando eu chegava ao serviço, a manhã, era (quase sempre) marcada pela evolução positiva do estado clínico. No entanto vários foram os dias que ao despedir-me estava mais cansada de guerrear contra os bichos. "Rezo por si" despedi-me dela algumas vezes com estas palavras antes de sair comovida perante a dignidade com que acolhia a paciência de continuar ali. Sempre lhe dei a mão pele na pele, num gesto de respeito que nos afasta qualquer medo de prognósticos provisórios. Os cabelos brancos e o olhar cheio de coragem trago-os sempre comigo, tal como a memória das vezes que a sentir-me feliz partilhava com o neto os momentos em que não estava e em que ele tinha passado bem. Ele, o menino que chorava perante a avó debilitada. Sentia que era meu dever partilhar com a família as coisas boas a que tinha assistido nas horas que não eram das visitas. - Esta manhã estava muito consciente, conversou connosco e sorriu, disse um dia ao neto numa vontade urgente de lhe garantir que havia bocados bons... mesmo quando eles não os conheciam. Esta manhã quando cheguei a neta dormir junto a cama da avó. Perguntei se queria que lhe fosse buscar um café. Disse que não, que desceria para tomar o pequeno almoço logo que a tia chegasse. Num gesto de quem não quer sair dali continuou a conversar com a avó que lhe pedia que fosse comer, que estava bem. E esteve bem durante os últimos minutos. - Estou com um pouco de falta de ar, partilhou connosco através da máscara. Já tinha conseguido que a neta fosse tomar o pequeno-almoço e sinto que a partir dali se preparava para partir. Iniciou um ciclo de respiração próprio de quem se prepara para a viagem, como a fazer-nos sentir que os seus estavam todos entregues ao amor que ela mesma ajudara a construíra naquela família. Foi comovente testemunhar isso mesmo, o amor que multiplicou a partir da pedra basilar que lhe reconheço. A enfermeira que acompanhou comigo a aproximação do comboio àquela paragem fez de tudo para a manter confortável, garantiu que a medicação lhe tiraria qualquer desconforto causado pela dor e aconchegou-a na esperança que a ver continuar a respirar. Estava o sol a marcar o meio dia e meia quando de mão dada na nela lhe procurei o bater do pulso. De um lado eu do outro a enfermeira. Por segundos (foi ilusão minha) acreditei que era dela aquele movimento que vinha apenas do meu pulso. PNa minha mão desligou o sopro com que acompanhava o ar que lhe saia da máscara. Partiu ali, naquele momento, em paz, sossegada, numa respiração pausada, sem sinal de sofrimento ou desconforto. Pela primeira vez tive na mão a vida a sumir-se, acompanhei a chegada à derradeira estação que começou por volta do ano da graça de 1923. O meu peito encheu-se de repente de emoção e dor. Confortei-me com a certeza que havia naquela senhora a força do que vivem uma vida abençoados pelo amor. E foi carregada de amor que a vi "sair" daquela cama de hospital. Minutos mais tarde imaginei-a a sorrir, por ali, à nossa volta, num gesto livre sorridente de quem se tinha livrado das máscaras, dos fios, tubos. Sentia-a a aconchegar todos os movimentos à volta dela, tudo o que usamos para a manter viva. Não havíamos de voltar a pedir-lhe calma, paciência... deixou na minha mão a certeza de que os que mais amava lhe guardaria o sorriso e aquele olhar luminoso. Depois teve início um ritual hospitalar que não conhecia. A médica conformou a partida e abrimos a sala. O "velório" começava ali. A enfermeira pegou no telefone e sem acertar logo nos números (quase incrédula perante a rapidez da partida) informou a família. E foram chegando os rostos, lavados em lágrimas, para se despedir. A neta, que passara a noite ao lado da cama de Isaura chamou-nos para nos abraçar e agradecer. "Partiu sem dor" garantimos. E foi mesmo assim que aconteceu. Partiu acompanhada por nós e de mão dada na minha. Um interior de mim conhece a certeza das palavras que disse à bisneta: - Não morreu enquanto viver em ti, só não conseguiu ficar mais tempo. Lutou até a fim, foi uma guerreira contra os malefícios deste inverno, mas não partiu e sabe que continuará a sorrir para ti" Confortamo-nos nos abraços que trocamos com os familiares e num jeito desajeitado de quem se afasta devagarinho para não roubar tempo à família (porque aqui nenhum segundo pode ser retirado à privacidade que se impõe perante a morte dos que amamos) saímos. Hei-de guarda-la a falar-me dos netos e bisnetos. O sorriso de quem não se incomoda com as rotinas de um hospital, e do olhar que garantia ter tido uma vida cheia de amor, de um profundo e ampliado amor. Onde estiver agora, numa forma de energia que regressa às estrelas, despeço-me de si Isaura, com um beijinho e um nó no peito que não se desfez. Garanto-lhe que fez nascer em mim gratidão por testemunhar tamanha dignidade e por ter marcado a minha vida com o rasgo último do sopro seu, na palma da minha mão. Consigo materializei os últimos passos de uma vida, em si refiz-me grão de areia. Há muito que não abraçava com esta força os meus filhos quando regressei a eles no fim do dia. Nunca antes tinha sido testemunha de uma despedida. Hei-de encontra-la quando um dia me cruzar, na cidade ou no mundo com uma cara sua, conhecida. Sei que a vou encontrar mais vezes, não se perde a memória de um dia assim. Descanse em paz minha querida, brilhe pelos seus e por nós que tivemos o privilégio de a receber e nos sentir marcados por si.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Quando o dia de trabalho não me sai do caminho


No dia dedicado à gratidão só posso agradecer. Agradecer a mensagem que me fala da princesa do futuro, a voz da amiga me devolve gargalhadas, os filhos à espera com uma lareira acesa e perspectivas incríveis sobre como me vou sentir ao partilhar com os futuros netos o tempo que por cá andei em simultâneo com os meus heróis... "imagine", oferecem-me para ouvir. Enrolada um envelope recebi também uma linda carta de amor, escrita pela minha filha criança, com sete passos de leitura. Impossível descrever e demasiado íntimo para partilhar. Tudo isto soube, particularmente, bem num dia como este em que o trabalho veio colado a mim pelo caminho. Por mais técnicas que nos tenham ensinado, por mais anos de experiência... há dias que não nos soltam de tão intensos que são em tristeza. De qualquer forma o dia dedicado à gratidão trouxe-me a história do investigador, médico, que num país da Ásia não conseguiu ver o laboratório do instituto onde trabalhou a vida inteira ser destruído. Perante a véspera do dia em que todo o conhecimento reunido naquele edifício seria destruído e desfeito com os escombros este investigador não resistiu e depois de meses em conflito obsessivo entre a revolta, a não aceitação e a ética decidiu alugar a maior carrinha que encontrou na cidade e na noite anterior à destruição do edifício assaltou aquele que foi o seu laboratório, onde trabalhou a vida inteira. Levou os documentos, todos os estudos, todo o conhecimento conseguiu e que estava ali reunido. Espalhou caixas pela casa dele, dos amigos... "Não resisti! Não aguentei e assaltei o meu próprio laboratório! Não me sinto em paz com isso mas planeei tudo e na véspera das máquinas entrarem para derrubar as primeiras paredes fui lá buscar tudo o que consegui. Enfiei um capuz na cabeça e tudo! Estava com medo dos militares, mas ver o meu laboratório desaparecer numa decisão política que não soube valorizar nenhum daqueles saberes... não! isso não! E se não tivesse feito aquilo ia perseguir um dos meus melhores amigos para o resto da vida porque ele fazia parte do grupo de pessoas que decidiram encerrar o instituto e destruir tantos anos de conhecimentos. Podiam tirar-me tudo, mas tanta investigação na área da saúde, não! Não consegui". A história deste médico veio de braço dado comigo para casa. A dele e a de Jackie de quem me despedi com o coração apertado. Amanhã o marido e a filha voltam para Londres e ela ficará (novamente) sózinha à espera que o coração estabilize e os médicos assinem a alta para que possa voltar para casa, Londres, onde mora há mais de 80 anos e onde o marido e os 9 filhos a esperam numa família enorme onde são (quase) todos muito ansiosos. Antes de me despedir do marido e da filha disse-lhes olhos nos olhos que cuidarei dela enquanto estiver internada. Podem ir (um bocadinho) descansados que farei o meu melhor. Como sou de agradecer por tudo e por tanto que me acontece voltei para casa assim... num movimento desconfortável entre a preocupação com ela (amanhã não vou trabalhar, fico sem actualizações na evolução dela) e por outro lado com a alegria de ter sido parte da coincidência maravilhosa que fechou este dia de trabalho. Esta manhã, antes de sair de casa, meti na mochila um pote de plasticina para oferecer à Jackie. Pensei que iria para casa hoje (ou amanhã, mas com a família) e era uma forma de me despedir e lhe dar que fazer durante a viagem que será feita de carro, não pode voar por enquanto). Hoje ainda, com o passar do dia percebemos todos que Jackie fica por cá mais uns dias e essa tristeza veio comigo, claro. Mas levei a plasticina com intenção de lha oferecer e foi isso que fiz, antes de sair. Surpresa grande foi saber que Jackie foi escultora a vida inteira! Uauuu! Se algum dia estiver internada (já velhinha) numa cama de hospital vou gostar que alguém me diga poesia para o tempo passar mais depressa. À Jackie, a plasticina eu imagino-me com a poesia.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

A mochila e umas coisas


Não gosto de andar de mala, mas gosto de ficar a olhar para as que são bonitas e diferentes. Não gosto de andar com "inutilidades" na mão, gosto de andar de braço dado ao que me surpreende. As mãos ajudam a levar livros, chapéus, ajudam a fechar abraços, a dançar (sem ninguém ver). As mãos gosto delas muito livres de modo que aderi ao movimento (cada vez maior) de adultos que passaram a usar mochila. A mochila também serve para andar com coisas e dentro da que eu uso é um corrupio! Há coisas que quase me irritam porque gostam de se espalhar pelo fundo, nos bolsos, de se enrolar nas alças, picar-me os dedos, fazer-me rir só de imaginar o que aconteceria se as tirasse dali.E adoram perder-se! É uma caso sério para as encontrar quando preciso! No fluxo de coisas que me circulam na mochila anda quase sempre um lápis (para sublinhar os livros), papéis, um tubo de plasticina e um terço. Há outras coisas mas estas são as residentes mais habituais. No caso dos rosários aprendi a procurar e sempre que são muito diferentes compro. Aprendi a olhar melhor para eles com um amigo que um faz colecção. Não é católico, eu sou, e ambos temos este gosto pelas perspectivas e pelos sistemas. Assim, quando vejo um terço que gosto vai para dentro da mochila. E lá fica (quase sempre) junto com um ou outro tubo de plasticina colorida. Sempre que enfio as mãos na mochila começa uma nova e (normalmente) muito privada e divertida aventura. Puxo do tacto e o que me chega primeiro é a forma. Logo depois vem a textura, a temperatura. Com sorte o que encontro ainda me intriga mais qualquer coisa se andar perdido por lá há algum tempo. Esta tarde encontrei uma bisnaga de chocolate de S. Tomé. Anda à espera da pessoa a quem me vai apetecer oferece-la de maneira que foram "deliciosos" os segundos que levei a descobrir o que era aquilo. Raramente cedo a ver sem adivinhar. Gosto, particularmente, desta disciplina racional que a curiosidade impõe. Cada uma das coisas que trago na mochila acaba por encontrar quem a procura, não gosto de ser dona de nada, estou de passagem, não tenho tempo. Hoje foi a vez de um terço que trago comigo há meses sair a correr direitinho às mãos grandes e inquietas de Paolo, um senhor de 90 anos, italiano, alto, ex-jogador do Nápoles. Os últimos dias tenho assistido a um desfilar de emoções fortes nos olhos dele. A sua amada está internada no hospital e ele vela cada movimento. Umas vezes impaciente: "i´m italian you know! an old and italian lover can you imagine!" diz-me ele no intervalo entre muitos que fazem o todo, às vezes desesperado perante a impossibilidade de levar a sua amada para casa. Moram num outro país que não este. É um homem com uma fé profunda, numa família inglesa que sublinha sempre "não acreditam em nada". Conforto-o numa espécie de empatia espiritual e (hoje) dei por mim a ouvir as lágrimas deste senhor várias vezes. Sempre que a máquina começa a apitar e os médicos entram no quarto onde ela está ele tem de sair. Correm todos a ler os instrumentos que controlam os batimentos cardíacos dela. A filha, que acompanha os dois também chora (mas só às vezes porque tem de voltar para casa sexta-feira) e vê a mãe a balançar entre um estável, quase seguro, e um novo obstáculo ao regresso a casa. - "Please, i just wanna take my mom home, please take her home" ouvi-a pedir à companhia de seguros que em Londres lhe explica o que falta para isso poder acontecer. Encostado ao corredor, do lado de fora da enfermaria, encontrei Paolo (hoje apetece-me chama-lo assim, por uma questão de privacidade) a levantar as mãos para o alto e perguntava-me: - Ele não a vai levar de mim pois não? - Vou-me zangar se fizer isso, respondi Depois lembrei-me que no fundo da mochila trazia um terço, um rosário lindo, vermelho. Senti ali que o tinha comprado há uns meses atrás e era para ele. Estava encontrada a pessoa a quem tinha de o oferecer (como faço com outras coisas que guardo na mochila, estão por lá até aparecer quem acredito possa ser feliz com elas). Quando lhe coloquei o rosário na mão ele sorriu. Olhou para os detalhes e fechou-o com força enquanto procurava a minha mão. "Tu sabes... tu sabes que és a pessoa neste lugar nos conforta. São os melhores, eu sei, mas tu estás connosco todos os dias". Ouvido isto diz o que faço normalmente e uma vez mais contornei o protocolo social (não para lhe trazer notícias boas, em inglês) mas para me encostar a ele, para o abraçar num profundo de quem lhe diz ao ouvido... Rezamos juntos. Sim, nas minhas orações que são, normalmente, longas conversas com Deus e às vezes zangas. Nessas preces envio a energia do que conheço num movimento que espero chegue lá a cima e volte ao coração daqueles dois cá em baixo. Chamamos aos nomes tantas coisas. Às coisas gosto de chamar o composto das coincidências, o invisível do sorriso quando nasce, a força absolutamente indissociável de quem tem fé na perfeição do Universo. Chamem-se as coisas que entenderem, às nossas, minhas e dele chamo por Elas todos os dias.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

I love her like a silly moon

Lisboa, Londres ou Nápoles... a silly moon é a mesma. E enche ruas por todo o lado! "I Love her like a silly moon" O eco nasceu em Pietro, 90 anos que conheci na enfermaria onde está o grande amor da sua vida Louise, 83 anos. Que privilégio ter-me cruzado com os dois. Ele é um senhor italiano que me cumprimenta e se despede, sempre, com um gesto largo de agradecimento e um beijo na mão. Ela, uma senhora inglesa que ficou sózinha em Lisboa quando foi retirada do cruzeiro onde seguiam e foi parar ao Hospital de Santa Maria. Tudo porque o coração dela disparou, foi parar aos meus dias. Conheci Louise deitada numa maca, no corredor da enfermaria momentos depois a trazerem das urgências. Dela sabia apenas que é uma senhora inglesa que sofreu um ataque cardíaco enquanto viajava com o marido, Pietro, num dos muitos cruzeiros que passam em frente a Lisboa. Por entre a máscara de oxigénio, os fios e a desorientação sorriu para mim e eu sorri para ela. Mais tarde percebemos que estavam a sair de Lisboa quando o coração dela disparou e o helicóptero do INEM a foi buscar ao navio. Pietro, o marido teve de continuar a bordo, rumo a Londres (devido à idade não podia acompanha-la). Quando soube estes detalhes fiquei comovida e (ainda mais) atenta. Não imagino o que sentiria se de repente estivesse a meio de uma viagem de cruzeiro, num país e numa cidade que não conheço e o meu coração disparasse de tal forma que um helicóptero me viesse buscar a bordo para me levar para as urgências. Foi exactamente assim que aconteceu com Louise, 83 anos, casada com Pietro, 90 anos (são o grande amor da vida um do outro e nunca antes tinham estado separados). Conheceram-se há 40 anos (estavam ambos divorciados) e a partir dali foi amor para a vida toda! Soube destes detalhes, hoje, pela filha dele que chegou com ele ontem. No segundo dia de internamento vi que Louise continuava desorientada, naturalmente, mas também muito agitada a tentar tirar os vários fios que a prendiam à cadeira e à "unidade". Na pressa das horas reparei que focava toda a atenção num senhor que estava sentado no fundo do corredor. Tentava soltar-se e quando voltei a colocar-lhe o oxigénio, correctamente, (cuidado que todos lhe prestávamos à passagem) - "Está muito agitada, não pára de tentar tirar os fios" informou a enfermeira responsável por Louise que acrescentou: "se continuar temos de lhe fixar os braços à cadeira ou arranca os acessos". Voltei a observar a senhora e perguntei-me o que estaria a chamar tanto a atenção dela... Aproximei-me, recoloquei o oxigénio, passei a mão pelo cabelo dela e a sorrir perguntei: - Precisa alguma coisa que está a ver ali ao fundo? Olhou-me, num movimento de espanto como que (finalmente) alguém estivesse a fazer a pergunta que ela queria ouvir. - É o Pietro! Está sentado ali ao fundo, é o meu marido! tenho de ir ter com ele, disse e acrescentou: Deve estar muito preocupado. É italiano, sabe. Muito emotivo! Está ali, estou a vê-lo! Percebi a causa daquela agitação (mais tarde ainda entendi melhor porque a senhora não tinha sequer os óculos que usa) e respondi: - Não minha querida, não é o seu marido que está ali sentado. É um senhor, sim, mas também está internado neste serviço. É português e chama-se António. Perante a surpresa e a confiança que sentiu no que lhe estava a dizer desatou a rir-se comigo. - Não é o Pietro que está ali sentado?! - Não, não é o seu marido, disse eu. O seu marido teve de seguir viagem no navio até Londres porque não podia acompanha-la quando a trouxeram para este hospital. Mas segundo sei ele está bem, a sua família telefona todos os dias e dentro em breve ele e a sua filha chegam a Lisboa para vir ter consigo. Todo o comportamento dela mudou quando percebeu que estava a confundir a pessoa que via no fundo do corredor. Não voltou a tentar arrancar os tubos, dividia o tempo entre o sono, os exames e o desfile de pessoas à frente dela, a falar uma língua que não entende. Volta e meia os médicos faziam-lhe perguntas, ela respondia. Passou a colaborar inteiramente e sempre com um sorriso no rosto. - E o Pietro? Já sabe alguma coisa dele? perguntava-me às vezes. É italiano sabe! - Só sei que está bem, que a sua filha tem telefonado para cá, fala com os médicos e estão a preparar-se para vir ter consigo. A preocupação desta senhora era com o marido. Ainda que lhe disséssemos que o coração dela precisava de repouso... entendo que fosse impossível e hoje confirmei a razão. Ainda o dia estava a começar quando ouvi vozes em inglês a correr pelos corredores em direcção a nós, u a do senhor, com um forte sotaque italiano. Estava no quarto dela e imediatamente dispensamos palavras. - É ele! disse Louise. É o Pietro! Chegou ontem à noite! Veio com a filha. - Que bom! que bommmm! disse eu. A partir desta manhã, a minha querida Louise está finalmente calma. Tem o amor de uma vida sentado junto à cama, às vezes quase a dormir (porque passou a noite em claro quando lhe disseram que não podia ficar no hospital com a mulher). A verdade é que é um senhor de 90 anos, acompanhado da filha que agora cuida dos dois. - I love her like a silly moon you know? disse-me ele com os olhos rasos de água. - I know... i know... Quando os médicos terminaram os exames puderam, finalmente, sentar-se de mão dada e de olhos postos um no outro. Puxei um pouco a cortina para terem alguma privacidade. Ela só sorri... ele chora, às vezes, entre a negação de tudo o que aconteceu e a estranheza de nunca terem estado afastados um do outro. Convidei a filha para um café. Tentei que desconstruisse um pouco o tempo, que "dividisse" tarefas, decisões. Tentei que se acalma-se um pouco, afinal, duas pessoas como aqueles dois só podem ser profundamente intensos também no cuidar. Está preocupada, ansiosa com as decisões que ela e os irmãos terão de tomar em relação à recuperação da mãe. Levei-a à varanda, afastamo-nos do barulho dos corredores, sorrimos deste rainy day! Voltamos ao quarto onde os dois continuavam estupefactos com o que aconteceu. Todos mais calmos. Começam a contar-me a história de amor que vivem há quarenta anos quando se conheceram. Eram ambos divorciados, encontraram-se e nunca mais se largaram (também eu e a filha passámos pelo divórcio, todos ali passámos!. Rimos juntos, no volume italiano do humor inglês que nos espanta os medos. Gosto tanto quando as histórias que passam por mim acabam bem. Quando o Amor se escancara à minha frente, ainda que deitado numa cama de hospital. Que comovente é olhar para Louise e Pietro como se os conhecesse bem (afinal nas minhas conversas com ela fiquei a saber muitos detalhes dos dois). O meu inglês acolheu-a, aprofundamos sorrisos, fui ouvinte e confidente. A filha comentou à pouco comigo. - A minha mãe diz que a Isabel foi um porto de abrigo neste hospital. Agradeci e sai comovida. Que ternura a imagem que guardam mim.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Senhora 5 Assobios

Uma senhora 5 assobios
A minha ligação com esta senhora começou logo que a vi na cama do hospital. Cabelos brancos, corpo marcado pela dor, pelas tentativas para a manter um bocadinho "mais rosada", como estava hoje. E dali, da primeira troca de olhares, nasceu ternura que se multiplica todos os dias. Não sei há quantos dias está ali aos nossos cuidados, sei que não perco uma oportunidade de passar por ela para lhe soprar beijinhos. E espero porque ao 4º ou 5º beijo meu ela levanta o braço devagar, sei que com esforço, leva a mão à boca e retribui sempre a rir... alto. É impossível ficar indiferente a tanta doçura e bondade que o olhar dela traz. Sorri e ri quando lhe passo a mão nos cabelos, na cara, quando me dá ela a mão, como que a consolar-me a mim porque a encontro ali, assim. Na cama da frente estava a Senhora "Bô é minina"(soará para mim assim) outra mulher extraordinária que tive o gosto de conhecer, vizinhas uma da outra mas dela escreverei num outro momento. Aqui o encontro é com a "Senhora 5 Assobios". Ouvi esta expressão da boca de um dos filhos, um pouco envergonhado, para mim soou-me a delícia e não lhe coloquei nada menos que a ideia de ter sido uma senhora muito, muito bonita. Quando vi chegar esta senhora de 93 anos imediatamente me liguei a ela. Cativou-me, nada a fazer. Num primeiro sorriso perguntei-lhe (na tentativa de perceber mais acerca da orientação que trazia) como se chamava, que idade tinha... se tinha filhos... Com dificuldade a falar mas nunca a rir tudo muito acertadamente. Quando escrevo "a rir" é mesmo a rir com a boca, os olhos e o coração. - Tenho dois filhos, disse-me. Um chama-se Manuel e a minha nora é Laura. Não consegui perceber o resto, tentou dizer mais nomes mas estava a cansar-se e o motivo deste internamento está também ligado a uma infecção respiratória por isso disse que não se cansasse, que falávamos mais tarde e acrescentei: tenho um Manuel e uma Laura e são meus filhos. Ali rimos juntas pela primeira vez. Se pudesse descrever um bocadinho do que gosto de coincidências! Esta é mais uma. Mais tarde, naquele mesmo dia, recebeu a visita do filho e da nora que me disseram os nomes da família. Falámos do irmão Manuel, dos netos. Umas horas depois conheci o filho Manuel. É um senhor com o cabelo da mesma cor de cabelo da mãe. Uma das vezes que entrei no quarto estava ele a dizer nos olhos da mãe: - Quem é o amor lindo do seu filho, quem é? Nem me atrevi a entrar! Tamanho alto era aquele momento de amor entre filho e mãe. Inventei tarefas no serviço para dar tempo aos dois para mais mimos. Guardarei sempre aquela eternidade, tanto quando ela tiver alta como quando chegar o momento que parece esperar muita serenidade. Hoje perguntou-me: - Quem está a bater à porta? Estão ali a bater à porta. - Sim, respondi-lhe. Estão a bater à porta e vou já ver quem é. Voltámos a rir como acontece quando me aproximo dela. Nunca se queixa. Nunca reclama. Apenas ri comigo. Esta manhã fechou-se e não estive na equipa que cuidou hoje dela. Mas vigio constantemente o estado dela e mais uma vez esperei pelo filho para lhe contar das vezes que esta trocamos beijinhos, de como está consciente e tranquila apesar de tantas "maldades". - A sua mãe esteve bem, dormiu de manhã, acordou a soprar-me vários beijinhos, e acrescentei: continua a responder-me com risos e percebe tudo o que lhe pergunto. Foi na sequência da conversa que me disse: - Sabe lá! A minha mãe foi uma Senhora 5 Assobios! (bem... bem... é minha mãe... mas olhe, sempre foi muito bonita). Sempre arranjada, salto alto, cabelo muito bem penteado. Foi a vida toda uma pessoa muito bondosa. Eu era um maroto e ela perdoava-me sempre. Tanto ela como a minha tia. Eram mesmo mesmo bonitas! Sabe, aprendi tudo com ela e com o meu pai que não era de se manifestar tanto mas era um homem com um rigor nos valores! Nem imagina! - Que bom ter tido um pai e uma mãe assim, respondi. Imagino que esteja muito grato. - Sim, profundamente grato. Sabe, tive de a trazer porque de repente começou a "cair... a cair..." mas agora já a vejo mais rosada. Ela é tão bonita! Tão bonita! disse o senhor. - Sim. A sua mãe é muito linda e por mais que o corpo tenha 93 anos o olhar é da idade infinita do brilho que tem continuei, a idade dela não se define, não se consegue dizer, respondi eu emocionada antes de me despedir dos dois. Ainda acrescentei: obrigada pela sua mãe, levo-a no coração! Sinto-me mesmo feliz e muito vaidosa por ter cuidado dela. Realmente é isso que sinto! Antes de sair do hospital fui correr todos os quartos (como faço diariamente para desejar as melhoras e dizer até amanhã, mesmo que esteja cheia de pressas). Hoje disse a todos "as melhoras e acrescentei, e um bom fim de semana. Não sei quem vou encontrar quando voltar na segunda-feira. Acredito que vou encontrar rostos que gosto muito, um deles anda ao despique comigo com adivinhas e ditos populares. O avô foi poeta, há uma estátua dele em Viseu. A esta ainda voltarei outro dia. A Senhora "Bo é Minina" teve alta, mas ainda hei-de saber mais vezes dela que o mundo é pequeno. Quanto à Senhora 5 (mil) beijos soprados... Sei que a trago comigo para sempre porque se tanta ternura não nos sai da memória! Um riso sonante e generoso também não. Cada dia que entrar naquela sala vou lembrar-me dos beijos que ali trocámos. Umas vezes com tempo... para lhe fazer festinhas, dar beijinhos na testa... outras quando me ponho a brincar às escondidas, com ela. Mesmo que tenha a cortina fechada e esteja eu nas pressas não perco (por nada) a oportunidade de a surpreender, de ver aqueles olhos arregalados de doçura e o riso que acompanha cada beijo que me sopra com a mão. Venho dela com o coração cheio. Senhora 5... não imagina a gratidão que sinto perante a sua ternura, os beijinhos ou quando me lembro de si e do seu filho a dizer nos olhos: - Quem é o amor lindo do seu filho, quem é? É a senhora, sim. A senhora com cabelos de ternura branca. Sim, é a senhora.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Acorda hoje uma aventura que anda a fazer-se em mim há muito tempo. A palavra é grega

Há um novelo cujo fio é composto por letras. Fazem todos parte de uma colecção de palavras que comecei há cerca de 7 anos na Grécia. Há um novelo com (muitas) pontas soltas, conversas inacabadas, memórias reais, implantadas ou imaginadas. Este é o momento de (re)começar. Não ceder à ideia confortável de me desculpar com os milhares de autores maravilhosos! Há um novelo onde trago alguns deles desde que me conheço e é a partir desta necessidade de usar palavras que começo aqui a tricotar uma teia. Há um novelo que se expande como o universo. Há um fio que se faz em mim e me leva a viver diariamente momentos inesquecíveis porque sei dos males do mundo mas nunca me renderei. Tento sempre fazer do dia um lugar um pouco mais bonito. Sou viciada em coincidências, peço pois a Jano que me dê um empurrão valente para que durante o resto do ano a preguiça, a tristeza ou a virtualidade não me impeçam de escrever. É isto que me salva! Há um novelo que começo a olhar, devagar, para ver por onde lhe pegue. ParaKalo parece-me uma boa forma de fazer a primeira laçada. ParaKalo é a primeira palavra da minha colecção de palavras e quer é a resposta "por nada, não custou nada" à palavra Obrigado. Registei-a a primeira vez na Grécia, voltei a ouvi-la no último verão na voz de uma senhora, com 80 anos, que andava a fazer compras num street market onde fui parar. Esta senhora, acompanhada por três de 4 filhos escreveu a palavras Parakalo numa página da minha moleskine quando lhe expliquei o que colecciono. ParaKalo pode ser também o novelo onde me encontro em Frida Kalo, tanto minha que arrepia! É como se lhe contasse histórias, num novelo de transformações. Obrigada a quem resistiu à provocação nos longos textos que coloquei num mural (onde não fazia sentido nenhum haver mais que 2 ou 3 palavras, uma partilha, uma imagem. Nunca consigo conter as palavras e escrever pouco. Dei~lhes tudo! Fosse no ínvisível ou abundância. Não tenho pretensões a escrever bem, não uso este tempo para aperfeiçoar esta arte porque a minha é contar e partilhar histórias, escolhas, vivências e tantos momentos! Viver é tão breve que olhar para este novelo faz-me pôr as mãos ao caminho. Acontecem milagres comigo todos os dias! Não aproveitar o espanto, o estrondo de cada respirar é que me parece, infinitamente, difícil. Tricotar teias, vamos a isto! (1 de Janeiro de 2 mil e 18)