quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

A mochila e umas coisas


Não gosto de andar de mala, mas gosto de ficar a olhar para as que são bonitas e diferentes. Não gosto de andar com "inutilidades" na mão, gosto de andar de braço dado ao que me surpreende. As mãos ajudam a levar livros, chapéus, ajudam a fechar abraços, a dançar (sem ninguém ver). As mãos gosto delas muito livres de modo que aderi ao movimento (cada vez maior) de adultos que passaram a usar mochila. A mochila também serve para andar com coisas e dentro da que eu uso é um corrupio! Há coisas que quase me irritam porque gostam de se espalhar pelo fundo, nos bolsos, de se enrolar nas alças, picar-me os dedos, fazer-me rir só de imaginar o que aconteceria se as tirasse dali.E adoram perder-se! É uma caso sério para as encontrar quando preciso! No fluxo de coisas que me circulam na mochila anda quase sempre um lápis (para sublinhar os livros), papéis, um tubo de plasticina e um terço. Há outras coisas mas estas são as residentes mais habituais. No caso dos rosários aprendi a procurar e sempre que são muito diferentes compro. Aprendi a olhar melhor para eles com um amigo que um faz colecção. Não é católico, eu sou, e ambos temos este gosto pelas perspectivas e pelos sistemas. Assim, quando vejo um terço que gosto vai para dentro da mochila. E lá fica (quase sempre) junto com um ou outro tubo de plasticina colorida. Sempre que enfio as mãos na mochila começa uma nova e (normalmente) muito privada e divertida aventura. Puxo do tacto e o que me chega primeiro é a forma. Logo depois vem a textura, a temperatura. Com sorte o que encontro ainda me intriga mais qualquer coisa se andar perdido por lá há algum tempo. Esta tarde encontrei uma bisnaga de chocolate de S. Tomé. Anda à espera da pessoa a quem me vai apetecer oferece-la de maneira que foram "deliciosos" os segundos que levei a descobrir o que era aquilo. Raramente cedo a ver sem adivinhar. Gosto, particularmente, desta disciplina racional que a curiosidade impõe. Cada uma das coisas que trago na mochila acaba por encontrar quem a procura, não gosto de ser dona de nada, estou de passagem, não tenho tempo. Hoje foi a vez de um terço que trago comigo há meses sair a correr direitinho às mãos grandes e inquietas de Paolo, um senhor de 90 anos, italiano, alto, ex-jogador do Nápoles. Os últimos dias tenho assistido a um desfilar de emoções fortes nos olhos dele. A sua amada está internada no hospital e ele vela cada movimento. Umas vezes impaciente: "i´m italian you know! an old and italian lover can you imagine!" diz-me ele no intervalo entre muitos que fazem o todo, às vezes desesperado perante a impossibilidade de levar a sua amada para casa. Moram num outro país que não este. É um homem com uma fé profunda, numa família inglesa que sublinha sempre "não acreditam em nada". Conforto-o numa espécie de empatia espiritual e (hoje) dei por mim a ouvir as lágrimas deste senhor várias vezes. Sempre que a máquina começa a apitar e os médicos entram no quarto onde ela está ele tem de sair. Correm todos a ler os instrumentos que controlam os batimentos cardíacos dela. A filha, que acompanha os dois também chora (mas só às vezes porque tem de voltar para casa sexta-feira) e vê a mãe a balançar entre um estável, quase seguro, e um novo obstáculo ao regresso a casa. - "Please, i just wanna take my mom home, please take her home" ouvi-a pedir à companhia de seguros que em Londres lhe explica o que falta para isso poder acontecer. Encostado ao corredor, do lado de fora da enfermaria, encontrei Paolo (hoje apetece-me chama-lo assim, por uma questão de privacidade) a levantar as mãos para o alto e perguntava-me: - Ele não a vai levar de mim pois não? - Vou-me zangar se fizer isso, respondi Depois lembrei-me que no fundo da mochila trazia um terço, um rosário lindo, vermelho. Senti ali que o tinha comprado há uns meses atrás e era para ele. Estava encontrada a pessoa a quem tinha de o oferecer (como faço com outras coisas que guardo na mochila, estão por lá até aparecer quem acredito possa ser feliz com elas). Quando lhe coloquei o rosário na mão ele sorriu. Olhou para os detalhes e fechou-o com força enquanto procurava a minha mão. "Tu sabes... tu sabes que és a pessoa neste lugar nos conforta. São os melhores, eu sei, mas tu estás connosco todos os dias". Ouvido isto diz o que faço normalmente e uma vez mais contornei o protocolo social (não para lhe trazer notícias boas, em inglês) mas para me encostar a ele, para o abraçar num profundo de quem lhe diz ao ouvido... Rezamos juntos. Sim, nas minhas orações que são, normalmente, longas conversas com Deus e às vezes zangas. Nessas preces envio a energia do que conheço num movimento que espero chegue lá a cima e volte ao coração daqueles dois cá em baixo. Chamamos aos nomes tantas coisas. Às coisas gosto de chamar o composto das coincidências, o invisível do sorriso quando nasce, a força absolutamente indissociável de quem tem fé na perfeição do Universo. Chamem-se as coisas que entenderem, às nossas, minhas e dele chamo por Elas todos os dias.

Sem comentários:

Enviar um comentário