sábado, 20 de janeiro de 2018

Aqui há Melros! E cantam tão bem!

Chegar à "cidade" meia-hora antes das oito é encontrar-me com pássaros que cantam bons dias uns aos outros, de árvore para árvore e que, vaidosos, desafiam quem passa ou também quem fica... assim, ali parado, como eu e ele a ouvi-los. Esta manhã quando cheguei confirmei que dos pombos nem uma palavra, que por ali não eram só pardais e que eram mesmo os melros que ouvia a cantarolar auroras (particularmente entusiasmadas) mesmo em cima das nossas cabeças. Nós, ali parados a ouvi-los. Eles, muito bem dispostos, a "passar o turno" uns aos outros através de sons que não conseguimos decifrar e penso isto na presença de um Nobel! Se pudesse ficar ali um dia inteiro havia de lhes seguir as cantorias. Se têm de se esforçar muito para se fazer ouvir em particular naqueles momentos em que os carros, os humanos e outros objectos se fazem ouvir, num exercício de poder sobre o canto deles. Ficaria deliciada e andaria atrás deles pelos jardins, aposto que se protegem do fumo nas traseiras do edifício, onde o verde sempre tem mais sol. Não posso ficar, dedico-lhes uns minutos e tenho de entrar. Combino que quando sair, a meio da tarde vou à procura deles para me despedir. Durante a semana é quase impossível. Saio dos corredores com a música a encher-me as orelhas, tanto é o frio. Mas hoje... hoje sentei-me ali à espera deles. Virei os olhos para cima e encontrei pardais, mais longe, mais ao fundo estavam os silenciosos pombos a sobrevoar as torres e eu ali, parada, a olhar para ele até que começaram a cantar para os vermos bem. Levantei-me, trazia as mãos carregadas de instantes fortes e fui atrás da cantoria. No cimo do ramo mais alto da árvore mais alta estavam três. Olhei para eles, cumprimentei-os e exclamei: - bem sabia que aqui há melros! Senhores, cantam tão bem! Naturalmente que ficaram curiosos comigo ali, especada à procura deles e eles lá do alto, calados (por momentos) e sempre a olhar para mim. Pelo cantar da tarde tenho ideia que estavam atentos às confidências, aos desabafos. Dizia-lhes que continuo a ser assim comovida de cada vez que alguém escolhe partir comigo ali. Disse-lhes que depois de lhes dar os bons dias, entrei no elevador e subi. Encontrei Madalena sem vontade nenhuma de comer, a papa não parecia boa e fui eu a correr ao frigorifico buscar uns potes (pequeninos) de fruta que a filha tinha deixado para ela! Fiquei contente por me ter lembrado. Tão contente! Madalena ainda comeu três colheres e disse: - não, não quero mais. Voltou o olhar para o lado. Umas horas depois andava eu entretida a inventar maneiras partilhar uns mimos quando olhei para ela e sorrimos as duas. Tinham passado as dores, não estavam lá. Foi o último sorriso que trocamos, momentos depois voltei para ver como estava e fechou-se ali o olhar, desta vez não queria dormir. No calor da minha mão imaginei que estaria por ali a sorrir, livre do incómodo colchão. Vi-a fechar a cortina, despedir-se das cores lindas que teve no cabelo. Quase sinto que se dirigia a ver um rio. - Talvez tenha seguido o vosso cantar... comentei com os melros. - Não! responderam. Não cantaram mais nada antes de me despedir de todos e seguir. Após aquele silêncio recomecei a ouvi-los. Afundei-me (não nas palavras ou na música como faço habitualmente) mas nos "Atos Humanos" descritos a partir da Correia. Grande é a batalha, o amor e os melros! Grande é o barulho invisível cá dentro.

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