quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Amália e Camélia, rendo-me à ternura largada nos sorrisos


Ambas têm nome de flores e é assim que as vou guardar, nesta memória tantas vezes desobediente. Tropecei na ternura que as liga quando uma delas foi parar à cama do hospital. A história desenho-a nos gestos das seis mãos que nos ligam. São duas irmãs, fisicamente muito parecidas e cada uma a puxar para o seu feitio. Sabem sempre a pouco os encontros com pessoas como elas, extraordinárias numa guerra aberta contra a doença. A Amália contou-me que gosta muito de fazer renda. Viúva, mãe de uma menina que partiu há muito está sempre preocupada com a irmã. - Acha que a minha mana vem hoje? perguntava ela quando lhe ia dar os bons dias e saber como estava. - Não sei querida, mas acredito que sim, respondia. Acreditei e a minha resposta confirmou-se todos os dias porque todos os dias encontrava a mana, perdida nos corredores de um grande hospital. Ia ao encontro dela, dava-lhe a mão e levava-a à cama onde estava Amália. Fui conhecendo as duas, no pouco tempo que podíamos partilhar mas foi o suficiente para conhecer a ternura que largam a cada sorriso. Amália foi internada na sequência de vários problemas e algumas vezes dei por ela muito desorientada, a fazer gestos repetitivos com as mãos. Não percebi à primeira vista mas um dia disse-me que estava muito aborrecida com a vida, que estava cansada e muito preocupada com a mana. Fiquei a ouvi-la até que finalmente se desaborreceu um bocadinho. Contou-me que quando a vida lhe foi "dificultosa" se pôs a fazer renda e que foi assim que deu a volta às coisas. "Só pedia que me trouxessem as linhas e eu fazia o trabalho, não levava nada. Fiz o napron que está na Igreja da Graça, um grande, que ficou muito bonito. E o que está na Igreja de S. José também fui eu que o fiz. Vai lá ver, eu faço-te um para ti". Quando Camélia chegou ia confirmando tudo com um "é verdade, tudo o que ela está a dizer é verdade" e pelo meio perguntava à mana: - E quem é que te compra as linhas para fazeres a renda Amálinha? A mana respondia da cama: És tu meu amor! És tu. Eu ficava para ali comovida só de as ouvir e de cada vez que tinha oportunidade ia ter com elas, "brincar" um bocadinho se lhes via alguma lágrima. Amália partilhou outras histórias mas as que tinham rendas eram as suas preferidas e eu escutava cada palavra com os olhos postos nas mãos. Numa das fases em que estava mais agitada enrolei (em forma de tubos) três folhas de papel para limpar as mãos (daqueles que há em todas as enfermarias do serviço). Lembro-me de ter pensado que os movimentos daquelas mãos estariam relacionados com os movimentos que Amália fez a vida toda, no crochet. Lembrei-me que os tubos de papel talvez trouxessem alguma rotina e tranquilidade às mãos, podiam "passar por" linhas e acalma-la nos momentos de maior desorientação. Foi como se tivesse encontrado uma âncora para agarrar Amália a um movimento familiar sendo que estava perdida num hospital, um lugar completamente estranho. Resultou! Logo que passei os rolos de papel para as mãos dela Amália deixou de tentar tirar os acessos que as enfermeiras lhe tinham colocado para lhe garantir a medicação acertada. Os olhos, as palavras e os pensamentos continuavam perdidos, é certo, mas as mãos tinham "linhas" com que se entreter e sentia-a mais calma a cada vez que a visitava e lhe passava os papéis para as mãos, enroladinhos, como que a dar corpo ao movimento que trazia da memória. O sol foi chegando àquela janela cada dia com mais luz e finalmente Amália teve alta. Antes de sair fiz a rotina que faço sempre e fui desejar as melhoras a todos os que estão no serviço. Estavam as duas nos "amorzinho" para cá e para lá e foi com um abraço e vários beijinhos que lhes desejei o melhor para cada dia. Camélia fez questão de me dar o número de telefone e pediu-me que lhe ligasse quando fosse a Torres. Se quisesse passar lá o Carnaval, na casa delas, repetiram o que diziam todos os dias: - as portas da nossa casa estão abertas de par em para para ti meu amor. Nem me parece que tenha tido largueza para acolher tamanha ternura, tanta era a gratidão que sentia por ter partilhado com elas aquela viagem, com altos e baixos tão grandes. - Muito obrigada minhas queridas e faça o favor de não voltar a ficar tão doente disse eu mais virada para Amália que volta e meia desobedece à diálise. Hei-de ir à Igreja da Graça só para ver o napron, ri-me com elas. E vou. Palavra que vou. Sou de fazer mais tricôt, nunca tive mão para crochet. Mas gosto tanto de ver rendas e gosto mais ainda das que nascem assim, das mãos das pessoas extraordinárias que se cruzam comigo. Pessoas que todos os dias me ensinam a não desistir, a ganhar todos os pontos que haja sobre a mesa quando a vida se apresentar assim "dificultosa" como a Amália me contou.

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