sábado, 13 de janeiro de 2018

Vida, 1923


Chama-se Isaura e partilhamos a mão uma da outra. Quando chegou falou-me dos netos, bisnetos, da neta que estava de partida para a Arábia Saudita e do orgulho que sentiam por vê-los voar, fortes e corajosos a atravessar o mundo no que os realiza. No primeiro dia trazia aquele sorriso e uma força gigante a encher-lhe a coragem. Durante o tempo que esteve connosco sorriu todas as manhãs, mesmo quando a máscara de oxigénio lhe moldava o olhar. Acompanhei a entrada de vários familiares, em particular dos netos e bisnetos. Quando eu chegava ao serviço, a manhã, era (quase sempre) marcada pela evolução positiva do estado clínico. No entanto vários foram os dias que ao despedir-me estava mais cansada de guerrear contra os bichos. "Rezo por si" despedi-me dela algumas vezes com estas palavras antes de sair comovida perante a dignidade com que acolhia a paciência de continuar ali. Sempre lhe dei a mão pele na pele, num gesto de respeito que nos afasta qualquer medo de prognósticos provisórios. Os cabelos brancos e o olhar cheio de coragem trago-os sempre comigo, tal como a memória das vezes que a sentir-me feliz partilhava com o neto os momentos em que não estava e em que ele tinha passado bem. Ele, o menino que chorava perante a avó debilitada. Sentia que era meu dever partilhar com a família as coisas boas a que tinha assistido nas horas que não eram das visitas. - Esta manhã estava muito consciente, conversou connosco e sorriu, disse um dia ao neto numa vontade urgente de lhe garantir que havia bocados bons... mesmo quando eles não os conheciam. Esta manhã quando cheguei a neta dormir junto a cama da avó. Perguntei se queria que lhe fosse buscar um café. Disse que não, que desceria para tomar o pequeno almoço logo que a tia chegasse. Num gesto de quem não quer sair dali continuou a conversar com a avó que lhe pedia que fosse comer, que estava bem. E esteve bem durante os últimos minutos. - Estou com um pouco de falta de ar, partilhou connosco através da máscara. Já tinha conseguido que a neta fosse tomar o pequeno-almoço e sinto que a partir dali se preparava para partir. Iniciou um ciclo de respiração próprio de quem se prepara para a viagem, como a fazer-nos sentir que os seus estavam todos entregues ao amor que ela mesma ajudara a construíra naquela família. Foi comovente testemunhar isso mesmo, o amor que multiplicou a partir da pedra basilar que lhe reconheço. A enfermeira que acompanhou comigo a aproximação do comboio àquela paragem fez de tudo para a manter confortável, garantiu que a medicação lhe tiraria qualquer desconforto causado pela dor e aconchegou-a na esperança que a ver continuar a respirar. Estava o sol a marcar o meio dia e meia quando de mão dada na nela lhe procurei o bater do pulso. De um lado eu do outro a enfermeira. Por segundos (foi ilusão minha) acreditei que era dela aquele movimento que vinha apenas do meu pulso. PNa minha mão desligou o sopro com que acompanhava o ar que lhe saia da máscara. Partiu ali, naquele momento, em paz, sossegada, numa respiração pausada, sem sinal de sofrimento ou desconforto. Pela primeira vez tive na mão a vida a sumir-se, acompanhei a chegada à derradeira estação que começou por volta do ano da graça de 1923. O meu peito encheu-se de repente de emoção e dor. Confortei-me com a certeza que havia naquela senhora a força do que vivem uma vida abençoados pelo amor. E foi carregada de amor que a vi "sair" daquela cama de hospital. Minutos mais tarde imaginei-a a sorrir, por ali, à nossa volta, num gesto livre sorridente de quem se tinha livrado das máscaras, dos fios, tubos. Sentia-a a aconchegar todos os movimentos à volta dela, tudo o que usamos para a manter viva. Não havíamos de voltar a pedir-lhe calma, paciência... deixou na minha mão a certeza de que os que mais amava lhe guardaria o sorriso e aquele olhar luminoso. Depois teve início um ritual hospitalar que não conhecia. A médica conformou a partida e abrimos a sala. O "velório" começava ali. A enfermeira pegou no telefone e sem acertar logo nos números (quase incrédula perante a rapidez da partida) informou a família. E foram chegando os rostos, lavados em lágrimas, para se despedir. A neta, que passara a noite ao lado da cama de Isaura chamou-nos para nos abraçar e agradecer. "Partiu sem dor" garantimos. E foi mesmo assim que aconteceu. Partiu acompanhada por nós e de mão dada na minha. Um interior de mim conhece a certeza das palavras que disse à bisneta: - Não morreu enquanto viver em ti, só não conseguiu ficar mais tempo. Lutou até a fim, foi uma guerreira contra os malefícios deste inverno, mas não partiu e sabe que continuará a sorrir para ti" Confortamo-nos nos abraços que trocamos com os familiares e num jeito desajeitado de quem se afasta devagarinho para não roubar tempo à família (porque aqui nenhum segundo pode ser retirado à privacidade que se impõe perante a morte dos que amamos) saímos. Hei-de guarda-la a falar-me dos netos e bisnetos. O sorriso de quem não se incomoda com as rotinas de um hospital, e do olhar que garantia ter tido uma vida cheia de amor, de um profundo e ampliado amor. Onde estiver agora, numa forma de energia que regressa às estrelas, despeço-me de si Isaura, com um beijinho e um nó no peito que não se desfez. Garanto-lhe que fez nascer em mim gratidão por testemunhar tamanha dignidade e por ter marcado a minha vida com o rasgo último do sopro seu, na palma da minha mão. Consigo materializei os últimos passos de uma vida, em si refiz-me grão de areia. Há muito que não abraçava com esta força os meus filhos quando regressei a eles no fim do dia. Nunca antes tinha sido testemunha de uma despedida. Hei-de encontra-la quando um dia me cruzar, na cidade ou no mundo com uma cara sua, conhecida. Sei que a vou encontrar mais vezes, não se perde a memória de um dia assim. Descanse em paz minha querida, brilhe pelos seus e por nós que tivemos o privilégio de a receber e nos sentir marcados por si.

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