sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Senhora 5 Assobios

Uma senhora 5 assobios
A minha ligação com esta senhora começou logo que a vi na cama do hospital. Cabelos brancos, corpo marcado pela dor, pelas tentativas para a manter um bocadinho "mais rosada", como estava hoje. E dali, da primeira troca de olhares, nasceu ternura que se multiplica todos os dias. Não sei há quantos dias está ali aos nossos cuidados, sei que não perco uma oportunidade de passar por ela para lhe soprar beijinhos. E espero porque ao 4º ou 5º beijo meu ela levanta o braço devagar, sei que com esforço, leva a mão à boca e retribui sempre a rir... alto. É impossível ficar indiferente a tanta doçura e bondade que o olhar dela traz. Sorri e ri quando lhe passo a mão nos cabelos, na cara, quando me dá ela a mão, como que a consolar-me a mim porque a encontro ali, assim. Na cama da frente estava a Senhora "Bô é minina"(soará para mim assim) outra mulher extraordinária que tive o gosto de conhecer, vizinhas uma da outra mas dela escreverei num outro momento. Aqui o encontro é com a "Senhora 5 Assobios". Ouvi esta expressão da boca de um dos filhos, um pouco envergonhado, para mim soou-me a delícia e não lhe coloquei nada menos que a ideia de ter sido uma senhora muito, muito bonita. Quando vi chegar esta senhora de 93 anos imediatamente me liguei a ela. Cativou-me, nada a fazer. Num primeiro sorriso perguntei-lhe (na tentativa de perceber mais acerca da orientação que trazia) como se chamava, que idade tinha... se tinha filhos... Com dificuldade a falar mas nunca a rir tudo muito acertadamente. Quando escrevo "a rir" é mesmo a rir com a boca, os olhos e o coração. - Tenho dois filhos, disse-me. Um chama-se Manuel e a minha nora é Laura. Não consegui perceber o resto, tentou dizer mais nomes mas estava a cansar-se e o motivo deste internamento está também ligado a uma infecção respiratória por isso disse que não se cansasse, que falávamos mais tarde e acrescentei: tenho um Manuel e uma Laura e são meus filhos. Ali rimos juntas pela primeira vez. Se pudesse descrever um bocadinho do que gosto de coincidências! Esta é mais uma. Mais tarde, naquele mesmo dia, recebeu a visita do filho e da nora que me disseram os nomes da família. Falámos do irmão Manuel, dos netos. Umas horas depois conheci o filho Manuel. É um senhor com o cabelo da mesma cor de cabelo da mãe. Uma das vezes que entrei no quarto estava ele a dizer nos olhos da mãe: - Quem é o amor lindo do seu filho, quem é? Nem me atrevi a entrar! Tamanho alto era aquele momento de amor entre filho e mãe. Inventei tarefas no serviço para dar tempo aos dois para mais mimos. Guardarei sempre aquela eternidade, tanto quando ela tiver alta como quando chegar o momento que parece esperar muita serenidade. Hoje perguntou-me: - Quem está a bater à porta? Estão ali a bater à porta. - Sim, respondi-lhe. Estão a bater à porta e vou já ver quem é. Voltámos a rir como acontece quando me aproximo dela. Nunca se queixa. Nunca reclama. Apenas ri comigo. Esta manhã fechou-se e não estive na equipa que cuidou hoje dela. Mas vigio constantemente o estado dela e mais uma vez esperei pelo filho para lhe contar das vezes que esta trocamos beijinhos, de como está consciente e tranquila apesar de tantas "maldades". - A sua mãe esteve bem, dormiu de manhã, acordou a soprar-me vários beijinhos, e acrescentei: continua a responder-me com risos e percebe tudo o que lhe pergunto. Foi na sequência da conversa que me disse: - Sabe lá! A minha mãe foi uma Senhora 5 Assobios! (bem... bem... é minha mãe... mas olhe, sempre foi muito bonita). Sempre arranjada, salto alto, cabelo muito bem penteado. Foi a vida toda uma pessoa muito bondosa. Eu era um maroto e ela perdoava-me sempre. Tanto ela como a minha tia. Eram mesmo mesmo bonitas! Sabe, aprendi tudo com ela e com o meu pai que não era de se manifestar tanto mas era um homem com um rigor nos valores! Nem imagina! - Que bom ter tido um pai e uma mãe assim, respondi. Imagino que esteja muito grato. - Sim, profundamente grato. Sabe, tive de a trazer porque de repente começou a "cair... a cair..." mas agora já a vejo mais rosada. Ela é tão bonita! Tão bonita! disse o senhor. - Sim. A sua mãe é muito linda e por mais que o corpo tenha 93 anos o olhar é da idade infinita do brilho que tem continuei, a idade dela não se define, não se consegue dizer, respondi eu emocionada antes de me despedir dos dois. Ainda acrescentei: obrigada pela sua mãe, levo-a no coração! Sinto-me mesmo feliz e muito vaidosa por ter cuidado dela. Realmente é isso que sinto! Antes de sair do hospital fui correr todos os quartos (como faço diariamente para desejar as melhoras e dizer até amanhã, mesmo que esteja cheia de pressas). Hoje disse a todos "as melhoras e acrescentei, e um bom fim de semana. Não sei quem vou encontrar quando voltar na segunda-feira. Acredito que vou encontrar rostos que gosto muito, um deles anda ao despique comigo com adivinhas e ditos populares. O avô foi poeta, há uma estátua dele em Viseu. A esta ainda voltarei outro dia. A Senhora "Bo é Minina" teve alta, mas ainda hei-de saber mais vezes dela que o mundo é pequeno. Quanto à Senhora 5 (mil) beijos soprados... Sei que a trago comigo para sempre porque se tanta ternura não nos sai da memória! Um riso sonante e generoso também não. Cada dia que entrar naquela sala vou lembrar-me dos beijos que ali trocámos. Umas vezes com tempo... para lhe fazer festinhas, dar beijinhos na testa... outras quando me ponho a brincar às escondidas, com ela. Mesmo que tenha a cortina fechada e esteja eu nas pressas não perco (por nada) a oportunidade de a surpreender, de ver aqueles olhos arregalados de doçura e o riso que acompanha cada beijo que me sopra com a mão. Venho dela com o coração cheio. Senhora 5... não imagina a gratidão que sinto perante a sua ternura, os beijinhos ou quando me lembro de si e do seu filho a dizer nos olhos: - Quem é o amor lindo do seu filho, quem é? É a senhora, sim. A senhora com cabelos de ternura branca. Sim, é a senhora.

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